Esboço biográfico do
Barão de Ipojuca
Je me viens pas
pleurer sur sa cendre; Il me faut pleurer que sur celle des méchants: car ils
ont fait le mal, et peuvent plus le reparer. M. Thomas (Elog. De Marco
A.)
A morte de um homem notável por
serviços e qualidades assinala a época de um grande infortúnio para a geração
que o perde. O finamento de uma existência que avultou nas lides políticas de
seu tempo, que adquiriu o direito de cidade pela importância do papel que lhe
coube representar na área em que floriu é um fato que não deve passar
indiferente aos olhos da sociedade contemporânea.
“No meio de lutas microscópicas,
das transações interesseiras, das cóleras artificiais, dos antagonismos pigmeus,
das ciladas e ardis, das rivalidades e egoísmos, das argúcias e futilidades”,
seria requintar o quadro de nossas misérias sociais o olharmos com indiferença
para a lápida que cobre as cinzas de um cidadão benemérito, a quem a pátria
deveu sacrifícios, os princípios, dedicação, os amigos, lealdade, a lei os
cultos do respeito. Valeria tanto como desdenhar a poética religião dos
espíritos, grave e saudosa como a do túmulo, piedosa e grata como a do berço. O
elogio dos finados é a apologia da civilização, da moralidade de um povo; é a
voz de natureza que se exalta na crença do seu destino mortal.
O sepulcro acaba de engolir o
invólucro caduco de um grande espírito, de um lidador infatigável, à um soldado
destemido da pátria. O barão de Ipojuca, outrora João do Rego Barros, já não
vive; cedeu por fim aos direitos da morte! Lutou; mas nesse lutar, sublime de
resignação cristã; provou quanto valia a rigidez de seu ânimo! o combate ardeu
em campo desigual; a sua luta era com o destino: devia sucumbir!
Apreciar as feições deste grande
caráter; designar-lhe os dotes que o enobreceram, as qualidades que o
recomendaram à estima pública, é empenho
nimiamente delicado. Ele viveu até ontem. Se numerosas afeições o circundavam,
e diziam nele um tipo completo de virtudes cívicas; do outro lado, ódios
pequenos, emulações obscuras, calunias, anônimas, que são o limbo expiador das
vocações enérgicas, dos méritos superiores, e incompreensíveis à turba dos
maldizentes, não raro procuram desbotar-lhe os matizes que realçavam a teia de
suas ações.
Mas, em honra de seus êmulos,
entre os quais os houve leais e cavaleiros, é força dizer que eles próprios, se
no calor das porfias se irritavam com os arranjos de seu gênio altivo e fogoso, eram os primeiros a
fazer justiça aos timbres de seu belo caráter.
João do Rego Barros, homem
deveras homem na tempera e na segurança da palavra, era ao mesmo tempo daqueles
de quem dizia Sá de Miranda:
De um peito aberto e limpo e fé lavada!
No momento da contrariedade
arcava como Leão, e, no medir das armas, muitas vezes saia de si, e irrompia
como o raio! Mas, esvaecida a fervura do sangue e apaziguada as paixões que
turbilhonavam naquela grande alma, ei-lo tão outro e tão longe do que parecera,
quanto vai do Leão ao Cordeiro! Era tão pronto em assomar-se quanto fácil em
arrefecer. Não sabia deixar sem perdão qualquer ofensa sofrida, e sem
arrependimento qualquer excesso a que seu gênio o arrastava.
Houve uma época em que os
sucessos políticos da província nos aproximaram e nos puseram em quase intima
convivência. Foi nesses dias de negregada memória, de provocações acerbas, em
que os ânimos incendiados no fogo das rivalidades estragavam em muitas represálias a seiva dos mais nobres
instintos, que eu tive ocasião de conhecer de perto os invejáveis predicados de
João do Rego Barros. Testemunhei alguns rasgos seus em matéria de beneficência,
que incontestavelmente o colocam na gloria dos beneméritos da humanidade.
Ninguém lhe levou a melhoria nas
práticas da virtude hospitaleira. Seu engenho era o asilo de quantos, batidos
do infortúnio, buscavam os auspícios de seu padroado. Dessa facilidade em
acolher desvalidos a malevolência de desafetos seus buscou pretextos para caluniar suas intenções, inculcando-o
como apaniguador de díscolos; mas, no correr dos tempos, logrou convencê-los de
que um sentimento mui diverso o guiava, e que jamais o crime encontrou guarida
em sua sombra.
Este sistema de proverbial
aquiescência a todos que o procuravam; o bom ânimo e singular liberalidade com
que abria os cofres de sua benevolência aos seus vizinhos e conterrâneos; o ar
de simpática e prazenteira familiaridade que transluzia em sua face para com
todos; a pronta e decisiva identificação com os interesses e empenhos de seus
amigos; o zelo com que os promovia e sustentava; a probidade austera com que se
havia em todos os seus negócios; a singeleza expansiva de seus atos e
maneiras, o tornaram dentro em pouco o ídolo estimado da população. Seu nome
tornou-se o símbolo da popularidade, mas da popularidade espontânea, afetuosa,
não mentida e violentada. O povo o amava e o temia. Amava-o porquê tinha nele o
patrono de seus infortúnios; temia-o porquê ele em suas afeições, pelo povo,
era antes de tudo e mais que tudo homem de justiça, incapaz de transigir com
erros e crimes.
Ide a esta hora à Comarca de
Cabo! Que vozes sentidas e magoadas não rompem de todos os tugúrios! Por ali
andei em dias de janeiro deste ano: testemunhei o vivo interesse em que toda a
gente inquiria melhoras de João do Rego,
e a expressão de intima angústia que se lhe divisava no rosto pelo estado
indeciso de seu restabelecimento.
João do Rego nasceu com
disposição para viver larga vida; mas seu gênio inquieto e laborioso lhe não
permitia resguardo, nem descanso diante da imagem dos deveres, a que o chamava
a qualidade de pai de família extremoso e desvelado pela sorte de seus filhos,
cujo futuro procurava abrigar das precisões
da indigência. Ele não reconhecia legitimidade na fortuna que não fosse adquirida com o suor do rosto.
Esse lidar incessante, esse arrostar de intempéries em todas as horas do dia e
da noite, esse desprezar de sintomas que lhe indicavam uma causa mórbida que
cumpria combater, lhe foram manso e manso lacerando os estames da vida. Chegou,
porem, um dia em que o cansaço e a fadiga o prostaram enfraquecido.
Forçado então pela dureza das
circunstâncias a cuidar de si, entrou em tratamento que, interrompidos a todos
os instantes por viagens forçadas, lhe foram completamente ineficazes. Já quase
moribundo, procurou nesta cidade, onde esperava que a medicina coletiva
operasse o milagre de restituir-lhe o vigor dos músculos, alquebrados pelo
longo roçar da enfermidade latente. Tudo, porem, foi baldado. As mais doces
esperanças se resolveram em fumo; e a arte se declarou vencida! Ela fez o que
pôde; mas ao impossível não se resiste! Os dias do grande lidador se tinham
escoados na ampulheta do tempo! Os
médicos lhe aconselharam, como recurso extremo, que procurasse os climas do
Ceará, que é hoje o vasto hospital dos inválidos da medicina.
O ilustre enfermo, conhecendo que sua
derradeira hora se achava prestes a soar, e que nenhum abrigo lhe era mais lícito
esperar dos esforços humanos, volveu seus olhos ao Supremo Médico das nossas
enfermidades espirituais! Com a resignação de homem verdadeiramente cristão, e
tão rara nestes dias de materialismo prático, pediu e recebeu os sacramentos de
igreja com a mais exemplar edificação! Preenchidos estes santos deveres, João
do Rego, mais por condescender com os seus, do que por confiar no resgate dos
seus dias, seguiu o destino que lhe indicaram os médicos, em companhia de sua
querida esposa símbolo do amor conjugal e um dos seus filhos.
O vapor Igarassú recebeu essa
desolada comitiva, e com ela demandou as regiões apetecidas. Até o Rio Grande
do Norte o estado do enfermo não apresentou diferenças notáveis, e como que em
sua fisionomia luziu por instantes um tênue lampejo de esperança. Eram os
derradeiros e pálidos clarões que a luz irradia ao aproximar-se a sua extinção
total!
Sua esposa e seu filho desejando
pô-lo o mais pronto possível sob a influência e ação dos ares do sertão,
resolveram subir pelo Rio Assú, e dali ao interior da província; mas ao
chegaram à Ilha das Cobras, sete léguas
acima de Macau, correndo o dia 18 do passado, João do Rego, tendo tomado uma
ligeira refeição, exalou o último alento, com a serenidade e placidez de um
espírito ungido pelo ósculo do Senhor! A piedosa esposa, o extremoso filho cerralham-lhe as pálpebras e depositaram suas cinzas em um tosco, mas decente
jazigo de um pequeno cemitério de Macau, servindo-lhes de eternas sentinelas
uma pedra e uma cruz!
Assim acabou um dos mais belos caráteres
de Pernambuco, cujo vácuo tarde ou nunca será preenchido no município de sua
residência! Na idade de pouco mais de cinquenta e três anos. João do Rego
Barros poderia ter cometidos faltas, mas não crimes. Assinalou-se por serviços
importantes à sua pátria; ela que o chore, e o seu choro é um justo tributo à
sua memória! E eu, que fui quinhoeiro, em sua lidas, em suas glórias e revezes,
não poderia eximir-me de pagar-lhe também este último feudo de perenal saudade.
Recife, 4 de março de 1860. P.
de C. (Diário de Pernambuco)
Transcrito do Correio Mercantil
de 4 de abril do mesmo ano.
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