Joaquim Fabrício Gomes de Souza
Por João Felipe da Trindade,
ex-aluno e ex-professor do Atheneu
Procurei
maiores informações sobre o professor Joaquim Fabrício Gomes de Souza, em
antigos jornais da Hemeroteca Nacional. Sua vida não foi fácil.
Fui
encontrar seu óbito em um jornal do Pará, “República”, que noticiava que tinha
falecido Joaquim Fabrício Gomes de Sousa, rio-grandense do norte, pardo, 45
anos de insuficiência mitral. Seu sepultamento foi no dia 2 de maio de 1900, no
cemitério Santa Isabel.
Em março
de 1877, a “Gazeta de Notícias” informava sua chegada ao Porto do Rio de
Janeiro, e nesse mesmo ano iniciava seus estudos na Academia Imperial de Belas
Artes, onde foi premiado, por diversas vezes, com menção honrosa e medalha de
prata, até a conclusão do curso.
Nos seus
contratos para servir no Internato do Imperial Colégio Pedro II, como coadjutor
de desenho, eram seus endereços, primeiramente, R. General Câmara, 141, e,
posteriormente, Largo de São Domingos, 8, sendo um desses contratos do ano de
1882. Foram renovados, pelo menos, até 1886.
Em 1891
foi eleito sócio benemérito do Liceu Engenho Velho, pelos serviços prestados.
Pelos
relatórios dos Governadores, descubro que foi contratado para reger por 3 anos
a cadeira de Desenho, do Atheneu, em maio de 1893, tendo rescendido o contrato
em abril de 1895, por ter sido nomeado auxiliar técnico da Comissão de
melhoramento do Porto de Natal, no começo de 1895. Em outubro, desse mesmo ano
de 1895, foi exonerado.
Foi
novamente contratado em setembro de 1896 para a cadeira de Desenho e
Caligrafia, do mesmo Atheneu, por mais três anos. Em abril de 1897 recebeu uma
licença de três meses para tratar da saúde.
Em um
artigo no Diário do Natal, datado de 1907, seu ex-aluno, no Rio de Janeiro, o
polivalente Raul Pederneiras, caricaturista, escritor, advogado, delegado de
polícia, professor de Faculdade, escreveu, sob o título “Um Vencido”:
Conheci-o no seu tugúrio modesto,
em uma carunchosa mansarda do Largo de S. Domingos, vivendo a vida de isolado,
em concentração talvez de incompreendido.
Vivia de lições particulares de
desenho, e de um ou outro retrato a óleo, que a burguesia balofa lhe
encomendava, de onde em onde.
Pobre, paupérrimo, com a sua
infalível sobrecasaca surrada, mas limpa, o seu chapéu de abas largas, afogado
na vasta cabeleira negra, e seu perfil de filho do norte, tipo legítimo de
caboclo, amorenado e simpático, fazia transparecer um quê de bondade,
destacando-se no olhar inteligente e vivo o brilho da audácia incubada, de
concepção por vir.
Raramente ria, e quando, no seu
mister de professor de desenho aturando as minhas aquarelas ao ar livre ouvia uma pilhéria inócua ou uma barbaridade
de trocadilho, franzia levemente os lábios, em um gesto bondoso de aplauso,
para logo depois cerrar o sobrecenho e concentrar-se no trabalho.
Fôra meu primeiro mestre, e como
tal achava o discípulo rebelde, desobediente, revoltado. Censurava
continuamente a caricatura, chegando a proibi-la por prejudicial ao desenho,
mas no fundo, intimamente, deixava-se ficar, mudo, observador, horas e horas
apreciando as primeiras manifestações de minhas “charges” e de meus “calungas”,
e terminava por ceder, dizendo que isso era “veia”, era “tendência, que não
conseguia evitar.
Um ano a fio, depois de deixar a
Escola de Belas Artes, tinha eu visita hebdomária desse concentrado mestre que
vinha ver o estado de adiantamento do discípulo, estabelecendo um método que me
parecia seu, unicamente seu no mistifório dos métodos que
pululavam então. Não admitia cópia de estampa, pois, para ele desenhar bem, era
ver bem, cópia de estampa era escravizar estilo e reproduzir o que outrem via.
Dava preferência para os estudos do natural, para a observação dos objetos e
para o fogo das expressões. Forte em anatomia, atirava no papel a “grafite”, em
bosquejo certo as contexturas musculares do corpo humano, ou as articulações
nervosas de uma rã. Em perspectiva, dizem possuir um livro precioso, adotava um
sistema prático e de eficácia provada, que fez nomeada nessa época.
Ganhei, em um ano de
aprendizagem, o que não me proporcionara um lustro de trabalho maquinal sem
orientação, na escola, onde o lente se limitava a corrigir e passar adiante sem
proferir palavras.
Mais tarde, o caboclo
desaparecera, não mais dando notícias suas. Saudoso, fui procurá-lo na mansarda,
estava deserta. Indaguei dos amigos e conterrâneos; nem uma notícia certa,
apenas a indicação vaga de que partira para o norte.
Soube depois, pelos seus colegas
de turma, que rompera na arte como uma revelação completa e subitamente desaparecera
na concentração intima de incompreendido, procurando evitar sempre as
companhias, as reuniões, as palestras, cenobita do espírito enclausurado na
ermida branda do silêncio.
Nada deixou definitivo, apenas
há, aqui e ali, um ou outro estudo acadêmico, de composição severa e tonalidades
seguras.
Passou-se o tempo, a caricatura
venceu-me, empolgou-me, e quando, nas horas de lazer, bem raras, atiro-me à
fantasia das aquarelas, evoco saudosamente o bom Fabrício Gomes, a cabeça
leonina, fronte larga e serena, onde sob um moreno jambo parecia brilhar a
concepção esmagada pelas vicissitudes do sofrer terreno. E até hoje ninguém
mais soube dele, de seu destino, de seu pouso, mas deixou no espírito dos que
sentem a saudade perene de seu temperamento exótico, alheia a vida burguesa,
refratário às convenções triviais, alimentando intimamente contra a indiferença
mudana, a chama do ódio vivificante, como dizia Pompeia – “não do ódio mau, que
ofende e vitima, mas do ódio que reage, do ódio que reivindica, do ódio que
reclama, do ódio santo, que é uma forma militante de amor”.
A
redação do Diário do Natal comentou sobre o escrito acima de Raul Pederneiras: o Fabrício Gomes, a que se refere o ilustre
escritor deve ser o nosso malogrado conterrâneo Joaquim Fabrício Gomes, falecido
há anos no Pará na mais extrema pobreza, deixando aqui mulher, que ainda
existe, e um ou dois filhinhos. Joaquim Fabrício estudou na Escola de Belas
Artes do Rio a custo da antiga Província, que depois retirou-lhe a subvenção.
Depois do diploma pela Escola aqui voltou, já na Republica, e casou-se. Não
tinha conseguido colocar-se e nada fazendo aqui foi para Belém, onde faleceu na
maior indigência.
Na
verdade, Joaquim Fabrício trabalhou vários anos, antes de vir para Natal. Raul
Pederneiras voltou a escrever sobre o Professor, no Jornal do Brasil, do ano de
1913, com o título de “Conselhos inúteis”.
Era o título do canhenho deixado
por Fabrício Gomes, o misterioso artista caboclo, que foi o nosso primeiro
mestre de desenho. Entre os raros manuscritos inéditos que deixou consta-nos
que havia um bem trabalhado opúsculo sobre perspectiva linear aérea e alguns
versos pobres.
Somente conseguimos alcançar um
punhado de laudas de papel com o título que encima estas linhas.
O artista ingratamente esquecido,
desfavorecido de fortuna, atirado ao limbo do menoscabo, habitava uma
água-furtada do largo de São Domingos, onde três vezes por semana íamos
buscá-lo para o estudo das paisagens e aquarelas ao ar livre.
Certa vez descobrimos sobre o
travesseiro as laudas de papel. Mestre Fabrício quis escondê-los; “não
prestavam”.
Eram apontamentos, conselhos,
notas para os que desejam viver “tranquilos e seguros”. Instado, rogado,
afinal, cedeu, para que passássemos a limpo as suas notas.
É delas o punhado de conselhos
que aqui transcrevemos, e onde se poderá observar algo do formoso talento desse
artista quase ignorado hoje; talento aliado a um pessimismo e a uma ironia fora
do vulgar. São dele as observações que publicamos, para que um dia seja feito a
justiça sobre o seu talento, que alguns zoilos tentaram depreciar.
“Serão inúteis estes conselhos.
Serão. O certo é que os fiz para mim, e se algum dia virem a luz da grande publicidade,
terão o belo consolo de não serem atendidos nem obedecidos.
Fica-me o orgulho da exceção.
Ainda bem. Poucos poderão dizer outro tanto, presos aos laços da convenção e do
preconceito, sem mais formalidades.
Observei demasiado a vida dos
homens e das coisas e as notas esparsas dirão talvez que alguém houve com
coragem inaudita de opinião própria.
Pouco importa a opinião dos
outros, o exame, a análise dos terceiros – sou de minha escola e de meu pensar,
e sigo adiante.
- Quando tiveres algum dinheiro
na algibeira, a ninguém convides para qualquer gasto.
Deixa correr livremente o barco
da situação. O dinheiro à ufa dar-te-á amigos e admiradores de ocasião. Passado
o período das espigas gordas, dos amigos e admiradores, não encontrarás um só
para semente.
- Subiram o preço da xícara de
café. Dificuldades do tempo assim o exigem. Para resolver o problema, comprima-se
o contribuinte.
Um quilo da rubiácea dá umas
setenta xícaras e resolve o problema econômico e onzeneiro do fornecedor – É
assim a economia política: traz sempre a felicidade... para os outros.
- Em matéria de arte, despreza
sempre as questões de escola. Dize que tudo está muito bem e muito bom. No dia
em que notares o mais leve senão em um trabalho artístico terás a certeza de um
inimigo pelas costas.
- Todavia se não tens veia para a
crítica, se de nada entendes não percas a esperança. Faze-te de critico de arte
teatral, que é a maior legião dos pobres de espírito e o consolo supremo dos
que nada entendem.
- Quando alguém perorar com
gravidade de atirar para contrapeso citações perdidas de autores massudos,
acredita, dá toda a fé ao que ouvires e ficarás sendo tão erudito como o alguém
que te azucrinou o ouvidos e a paciência.
- Foge de ouvir a leitura de
sonetos no meio da rua e dos cães que dormem nas soleiras do casario dos
arrabaldes, são dois males que quase sempre se repetem quando nos atacam.
- Nunca invejes o ricaço ou o
graúdo do “parvenu”, se tiveres talento. Orgulha-te com a independência do
espírito, pois é fácil alcançares o que possui o ricaço e é impossível ao
ricaço alcançar o que possues.
- Se tens talento, lapida-o e
guarda-o com santidade. Ele chega a inquietar a própria tirania. Se esta é fraca, há de temê-lo como uma
força; se ela é forte há de aborrecê-lo e odiá-lo como uma liberdade.
- A mulher que de tudo se ri, ou
não tem o juízo seguro ou então é possuidora de magníficos dentes. É a menos
perigosa das mulheres, a que se ri, porque o riso é desarmamento geral dos maus
instintos, das más paixões.
- Não sei quem disse que se
considerava estulto quando olhava para si próprio e se considerava de muito
valor quando se comparava aos outros. Por isso, é que eu me sinto modesto e
parvo quando me concentro, mas sinto em mim um vigoroso atleta de sentimento e
de ideias quando vejo em torno os conselheiros de Estado e os críticos de arte.
- Em arte plástica,
principalmente em pintura, a dificuldade não está na execução e no sentir do
artista, está na improvisação que a obra deve causar ao público. Quem assim não
pensar que se meta entre quatro paredes e não apareça ao mundo.
- Devo o êxito de minhas ações
aos conselhos que não recebi de pessoa alguma. Fico-me muito obrigado por isso
e dos meus conselhos neles espero que ninguém se aproveite.
- Se a ociosidade é a mãe de todos
os vícios, a burocracia deve se avó. Não há exemplo, em terra latina, de uma iniciativa
e intensidade de vida no regimento colossal dos parasitas sociais.
Dou-me muito bem com todos os que
não se dão comigo. Ao menos esses, foram sempre a favor da justiça a meu
respeito. Os outros, os que me conhecem, tem sempre um “mas” a acrescentar às
bondosas referências.
- Quando alguém, para definir
qualquer coisa, começa pelas palavras: “por exemplo” – cuidado com ele, não tem
certeza do que diz ou não está senhor da praça na matéria.
- Procure ser útil a ti e aos
teus se os tiveres. Aos demais procura utilidade que se transborde em seu
benefício. Dirás que é um conselho egoísta. Mas que é o altruísmo senão o
próprio egoísmo transbordante?
- Na monografia das artes
liberais há dois capítulos tremendos. O primeiro é da iniciativa, o segundo o
da capitulação.
- Fazer o bem pelo bem que nos
sabe é preferível ao desejo de fazer o bem pela recompensa que possa advir. O
primeiro ato é um egoísmo são, forte, duradouro; o segundo ato é um epilogo ...de
caráter.
Muitos, muitos outros conselhos
deixou Fabrício dos papéis perdidos, e se não fora o seu gênio dispersivo e irrequieto,
talvez admirássemos uma obra mais sólida, vigorosa, ponderada, que pudesse
mostrar com toda verdade o quanto de valor e de merecimento possuía o artista
quase ignorado, infeliz e bem depressa esquecido.
Joaquim
Fabrício Gomes de Sousa e sua esposa D. Idalina Leopoldina de Sousa gerou, o
também professor do Atheneu, Israel Nazareno de Sousa, nascido aos 3 de julho
de 1897, na Rua Santo Antonio, nº 796.
P. S. Este artigo foi publicado no livro: Construtores da Ágora Soberana Potiguar- Múltiplas Memórias- Professores do Atheneu Norte-Riograndense (1892/anos 1960), cujos organizadores foram Diógenes da Cunha Lima e Eva Cristini Arruda Câmara Barros.
P. S. Este artigo foi publicado no livro: Construtores da Ágora Soberana Potiguar- Múltiplas Memórias- Professores do Atheneu Norte-Riograndense (1892/anos 1960), cujos organizadores foram Diógenes da Cunha Lima e Eva Cristini Arruda Câmara Barros.