Registros forenses da Comarca de Santana do Matos (Rio
Grande do Norte, 1855-1920): história e genealogia
Arlan Eloi Leite da Silva[1]
Giulliano Alves de Sousa[2]
1.
Introdução
O objetivo deste estudo é apresentar os registros
forenses da Comarca de Santana do Matos, Rio Grande do Norte, como fontes
documentais que possibilitam estudos histórico-genealógicos. Para tanto,
mobilizamos os registros tipificados como inventários post-mortem;
testamentos; carta de sesmaria; cobranças; vendas e demandas judiciais sobre
terras, inclusive com a presença de Vicente Simões Pereira de Lemos (um dos
fundadores do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e seu
presidente efetivo); ação judicial pela posse de escravizados; bem como um
processo de crime de morte, no período entre 1855 a 1920, os quais são
articulados à História de Santana do Matos. Este artigo está dividido em cinco
partes: Introdução; Um registro de sesmaria e outras demandas judiciais sobre
terras; As últimas vontades e as partilhas de bens de famílias santanenses;
“Sangue bastante pelo chão” em Tanques Pretos; e as Considerações finais.
De acordo com os dados do IBGE (2022), Santana do
Matos possui um território de 1.422,268 km2 e uma população residente de 12.456
pessoas. O povoado de Santana do Matos deu início com a Fazenda Bom Bocadinho,
de propriedade do português Manoel José de Matos, ainda no século XVIII. Em
agradecimento à Nossa Senhora de Santana, o referido português construiu uma
capela que recebeu o nome de Capela de Santana do Matos, sendo uma referência à
santa católica e ao dono das terras. Em 1836, “Santana do Matos desmembrou-se
de Assú, tornando-se município”, porém em “6 de agosto de 1855, pela Lei
Provincial de nº 314, o município voltou à condição de povoado.” Entretanto,
com apenas um mês, “foi definitivamente restabelecida a condição de município
no dia 5 de setembro de 1855”. (Morais, 2007, p. 186).
O município
santanense está localizado na região central do Rio Grande do Norte, distando
191 quilômetros da capital. Limita-se com Angicos, Itajá, Fernando Pedrosa, São
Vicente, Florânia, Tenente Laurentino Cruz, Bodó, Lagoa Nova, São Rafael,
Jucurutu e Cerro Corá. No século XIX e começo do século XX, por exemplo, São
Rafael e Bodó integravam o município santanense, inclusive também parte do
território do atual município de Jucurutu. (Morais, 2007).
A Paróquia de Santana do Matos, denominação dada pelo
Recenseamento do Brasil em 1872, apresentava um total de 9.819 homens e
mulheres livres. Dos escravizados, 390 homens e mulheres eram cativos. Sendo a
população total de 10.209 pessoas, incluindo 4 italianos e 4 portugueses como
estrangeiros residentes. No que diz respeito à qualificação étnica desses
indivíduos, 4.208 eram brancos, 5.211 pardos, 177 pretos e 220 caboclos. Desse
modo, a maioria da população era classificada como não-branca. (Brasil, 1872,
p. 37).
Sobre as profissões em Santana do Matos,
apresentavam-se 3 religiosos seculares; 1 advogado; 1 notário e escrivão; 1
oficial de justiça; 5 professores e homens de letras; 1 empregado público; 9
artistas (provavelmente artesãos); 2 pescadores; 74 capitalistas e
proprietários; 4 manufatureiros e fabricantes; 43 comerciantes, guarda-livros e
caixeiros; 302 costureiras; 1.298 lavradores; 271 criadores; 407 criados e
jornaleiros; 358 serviços domésticos, dentre outras atividades, e 6.976 pessoas
sem profissão. (Brasil, 1872, p. 37-38). Já no Recenseamento de 1920, o
município de Santana do Matos tinha uma população de 21.393 indivíduos, sendo 4
estrangeiros desse total. (Brasil, 1928, p. 506). Essa quantidade populacional
expressiva pode ser explicada com a extensão territorial de Santana do Matos
antes do desmembramento de outros municípios emancipados posteriormente,
conforme já mencionado.
Os escravizados pouco aparecem nos inventários post-mortem,
porém, pelo Recenseamento de 1872, havia uma população significativa desses
indivíduos sob o jugo da escravidão, sendo 187 deles qualificados como pardos.
(Brasil, 1872, p. 37). Também nos chama atenção o fato de haver uma grande
parcela da população santanense sem ocupação definida. A julgar pelos registros
forenses de Santana do Matos, na segunda metade do século XIX para início do
século XX, a população tinha uma parcela expressiva de pequenos proprietários
rurais, com poucas exceções de famílias abastadas que eram possuidoras de
grande cabedal. Além disso, é provável que muitas famílias santanenses deixaram
de fazer a partilha de bens em ação judicial.
Oliveira Júnior (2021, p. 49) identificou, em Santana
do Matos, as “terras de negros” em comunidades que estão localizadas no
Distrito de Santa Tereza, na Serra da Pimenteira e no Distrito Barão de Serra
Branca. No de Santa Tereza, por exemplo, existem três comunidades negras
rurais: Conceição dos Negros, Riacho da Roça e Assentamento São Manoel.
Tratam-se de comunidades quilombolas oriundas, provavelmente, daquela população
escravizada que aparece no censo populacional de 1872. Há, portanto, a necessidade
de maiores estudos sobre a escravidão e as famílias não-brancas e quilombolas
do município santanense.
Ademais, a população de origem indígena, tratada como
cabocla nesse primeiro recenseamento brasileiro, é remanescente dos povos
originários que habitaram o território santanense antes da chegada dos europeus
e africanos. De acordo com Bertrand (2010, p. 77), existem cerca de 20 sítios
arqueológicos em Santana do Matos, sendo “um sítio com vestígios de
enterramentos, dois sítios com vestígios líticos e um total de dezessete sítios
[...] com vestígios de arte rupestre”. Os sítios arqueológicos foram identificados,
dentre outros, com o nome de Cruzeiro, Serrote dos Caboclos, Pedra Redonda,
Basso, São Vicente, Saquinho, Pedra do Braz, Montevidéu, Pichoré, Pedra do
Suetônio, Serrote do Gavião, Cachoeira, Serra do Urubu, Pinturas e Bom Jesus.
(Bertrand, 2010).
A orientação
teórica desta pesquisa está alinhada a uma História Social dos registros
forenses da Comarca de Santana do Matos, Rio Grande do Norte, a partir da ideia
de que a “pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção
socio-econômico, político e cultural”. (Certeau, 2006, p. 67). Além disso, a
História Social pode voltar a sua investigação para minorias, grupos
profissionais e células familiares, isto é, “para um subconjunto específico da
sociedade”. (Barros, 2004, 113). Nesse sentido, a pesquisa histórica
direcionada para a Genealogia (história da família) pode ser abordada a partir
das “relações sociais, as classes estamentos, as ideologias.” (Barros, 2005, p.
96). Além disso, o trabalho com registros documentais, que elegemos como fontes,
pode ser entendido como um espaço da recordação por meio
das memórias dos mortos com os seus nomes e histórias de vida (Assmann, 2011).
O presente estudo apresenta uma metodologia com
abordagem descritiva, analítica e qualitativa sobre os registros forenses na
perspectiva nominativa. Assim, entendemos o método genealógico a partir do
elemento de identificação dos sujeitos “que distingue um
indivíduo de um outro em todas as sociedades conhecidas: o nome.” (Ginzburg e
Poni, 1989a, p. 173-4). Já o método
do paradigma indiciário possibilita a busca pelos indícios deixados por homens
e mulheres em um dado recorte espaço-temporal por meio de diversos registros
históricos. (Ginzburg, 1989b).
Ainda na abordagem metodológica, daremos ênfase “sobre
o potencial das análises qualitativas dos registros [...], com base na ligação
nominativa feita a partir do cruzamento com outras fontes”. (Guedes e Fragoso,
2016, p. 40). Por isso, é importante o confronto de diferentes tipologias de
fontes tratando do mesmo objeto de pesquisa, dialogando com outras pesquisas
bibliográficas, a fim de compreendermos o percurso de determinados indivíduos
ou famílias, ou seja, os itinerários nominativos.
Quanto ao recorte temporal, dá-se início em 1855 com o
inventário post-mortem mais antigo encontrado e vai até 1920, quando já
se passaram mais de 100 anos do falecimento de testadores e inventariados. De
acordo com Pinsky e Luca (2011, p. 17), “o método histórico aproxima-se muito
do método de um detetive ou de um médico que, à força de esforços titânicos,
deve extrair coisas que só aparecem de forma indireta.” Outrossim, o método
adotado pelo historiador depende do problema que o leva à investigação (Pinsky
e Luca, 2011). Desse modo, percebemos que esses registros forenses contribuem
para a História de Santana do Matos e também do Rio Grande do Norte.
Os registros judiciais do Fórum da Comarca de Santana
do Matos estão armazenados em caixas, em uma sala específica do prédio, com
identificações por datas e tipos de registros, porém é possível encontrar
outros tipos de documentos na mesma caixa que não foram inicialmente
sinalizados. Não há uma sistematização precisa no armazenamento desse material
forense. Contudo, é possível ter acesso com autorização da direção do Fórum,
respeitando o manuseio correto dessa documentação relevante que precisa ser urgentemente
melhor preservada com digitalização e catalogação.
Nessa direção, foram fotografados inventários post-mortem,
testamentos, documentos fundiários (disputas pela posse de terras, cobranças,
vendas de propriedades e o traslado de uma carta de sesmaria), ação judicial
pela posse de escravizados, além de um processo de crime de morte. Depois da
identificação de cada um desses registros, passamos a transcrevê-los para a
construção desta pesquisa. Sobre as diversas tipologias documentais, a maioria
é inventário post-mortem. Priorizamos, contudo, a identificação dos
núcleos familiares, seus logradouros e suas ligações de parentescos ou
afinidades com outras famílias. No entanto, o arrolamento de bens, as partilhas
e o cabedal inscritos nos inventários post-mortem, testamentos etc. são
importantes para entendermos a posição socioeconômica e até mesmo política de
determinadas famílias naquela sociedade santanense.
Nos arquivos do Poder Judiciário, podemos encontrar
testamentos, inventários post-mortem, processos cíveis e processos
crimes. (Pinsky, 2008). Quanto ao testamento, é o instrumento que registra as
últimas vontades de um sujeito, permite a revelação de suas crenças e visões de
mundo, a previsão de “auxílios a filhos, parentes ou conhecidos, inclusive
escravos, sob as mais variadas alegações.” Mas o testador também poderia
reservar “valores consideráveis da terça para favorecer um filho ou uma filha,
eliminando o caráter igualitário” da inevitável partilha. (Pinsky, 2008, p.
36).
No tocante aos inventários post-mortem, são
registros que possibilitam “a compreensão de como o patrimônio familiar era
transmitido de uma geração para outra, por meio de dotes, terça e legítima
transmitidos aos herdeiros.” Eles podem auxiliar no estudo da evolução da
composição do patrimônio de determinadas famílias ao longo dos séculos. Também
“podem ser usados para se estudar a escravidão sob os mais variados aspectos.”
(Pinsky, 2008, p. 37).
Já os processos crimes e cíveis “são fontes igualmente
abundantes e dão voz a todos os segmentos sociais, do escravo ao senhor.”
Permitem o estudo sobre as atividades mercantis, cobranças judiciais de
dívidas, além da “convocação de testemunhas, sobretudo nos crimes de morte, de
agressões físicas e de devassas.” E podem revelar as redes de sociabilidade,
solidariedade e até mesmo as rixas no cotidiano dessas populações do passado.
(Pinsky, 2008, p. 37). Quanto à documentação sobre terras, ela pode trazer “questões
agrárias ou habitacionais”, disputas judiciais e a posse de terras sem títulos
oficiais, porém essas propriedades rurais, em muitos casos, poderiam ser
negociadas livremente em tratos informais. (Pinsky, 2008, p. 34). Sendo assim,
todas essas tipologias de fontes oriundas do Poder Judiciário podem contribuir
com diversas pesquisas historiográficas e genealógicas.
2. Um registro de sesmaria e outras demandas judiciais
sobre terras
Em 1883, na cidade do Assú, com traslado para Santana
do Matos, foi lavrada uma cópia da Carta de Data e Sesmaria, de 2 de abril de
1742, pertencente ao sesmeiro João de Barros de Oliveira, morador na Ribeira do
Assú. O Poder Judiciário de Santana do Matos, no recorte temporal desta
pesquisa, esteve integrado à Comarca do Assú. Mas também encontramos referência
do pertencimento da Vila santanense à Comarca de Macau entre o final dos anos
de 1870 e começo dos de 1880. (Traslado [...], 1883).
A Carta de Sesmaria de João de Barros, firmada em
Natal, foi concedida por Francisco Xavier de Miranda Henriques, capitão-mor e
governador da Capitania do Rio Grande do Norte, em nome do rei de Portugal,
para os herdeiros descendentes e ascendentes desse peticionário. A terra ficava
entre as datas do Sítio Bom Jesus, pertencente ao referido sesmeiro, o Sítio
Cachoeira, de propriedade de Francisco Xavier de Souza, e a data de Curicaca,
pertencente aos herdeiros de João de Oliveira Velho. Tinha o comprimento de
três léguas a partir do serrote redondo dos massapês, onde findava a meia légua
do princípio da data de Francisco Xavier de Souza, correndo para a pedra
rachada com largura estabelecida entre o Sítio de Diogo Malheiros, Curicaca e
Bom Jesus. O registro original foi apresentado por João Severiano Correia
Barbosa e trasladado em público por Idalino Abílio Pinheiro Monteiro, em 3 de
março de 1883. (Traslado [...], 1883).
A sesmaria de 1742 alcançava o território de Santana
do Matos e certamente a preservação do original desse registro pelos
descendentes de João de Barros de Oliveira era uma forma de legitimar a posse
das terras por várias gerações da família. Os parentes de João de Barros
aparecem na região de São Rafael e, pelos registros forenses de Santana do
Matos, encontramos os juízes Capitão Antônio Cabral de Oliveira Barros e Manoel
Martins de Oliveira Barros, bem como o Tenente Francisco Martins de Oliveira
Barros, entre outros.
Em 1884, o Tenente Felipe Nery de Carvalho e Silva e a
sua esposa Belizária Wanderley moveram uma ação sumária de manutenção da posse
de uma data e sesmaria que o casal era proprietário. O réu foi Amaro Cassimiro
Bezerra Cavalcante por ter mandado Matias Cassimiro de Souza derrubar árvores e
brocar roçados na referida terra, que media três léguas de comprimento
confinantes com as terras do Curral Novo, Sítio Rufão, Bom Sucesso e com uma
légua de comprimento para a Serra Branca e duas para as partes da Serra Negra.
Felipe e Belizária tinham adquirido a posse da terra dos herdeiros de Antônio
de Oliveira e Freitas, o qual havia recebido a sesmaria em 1765. (Ação [...],
1884). Nesse caso, o registro da sesmaria servia para legitimar a titularidade
da posse de uma terra adquirida dos herdeiros do sesmeiro.
Para essa ação judicial, Felipe Nery e a sua esposa
Belizária Wanderley, Barão e Baronesa de Serra Branca cujo título foi dado por
decreto imperial em 1888, fizeram, em 1883, uma procuração pela qual
constituíram como seus procuradores o Doutor Vicente Simões Pereira de Lemos
(então Promotor Público e Advogado do citado casal) e João Domingos da Cunha
Lages (proprietário rural e falecido em 1886 com abertura de inventário post-mortem).
O objetivo era tentar uma conciliação com Matias Cassimiro de Souza e a sua
mulher Josina Carolina Pinheiro da Silva. O juiz João Francisco Uchoa Costa
mandou um oficial de justiça notificar o réu, onde ele morava no Sítio Curral
Novo, mas o procurado havia viajado para Natal. Segundo o escrivão João
Rodrigues da Cunha Baracho, Matias teria viajado para evitar o recebimento da
citação judicial. (Procuração [...], 1883).
Trecho do requerimento do Tenente Felipe Nery de Carvalho e Silva e de
sua esposa Belizária Wanderley de Carvalho e Silva com a assinatura do Advogado
Vicente Simões Pereira de Lemos.
Vila de Santana do Matos, 23 de novembro de 1883.
Vicente Simões Pereira de Lemos (1850-1918) foi
“historiador, advogado, juiz, desembargador, escritor” e fundador do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) e seu presidente efetivo
de 1910 a 1916. Era natural de Recife, Pernambuco, onde tornou-se Bacharel em
Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito, em 1873. No Rio Grande
do Norte, foi Promotor Público em Macau, Assú e Mossoró, Juiz de Direito em
Natal e Canguaretama e Desembargador do Tribuna de Justiça do Estado, em 1898.
Com o pseudônimo de Simão Nunes, Vicente colaborou com jornais e revistas de
sua época. (400 nomes..., 2000, p. 773). Esse heterônimo fazia referência a uma
provável ascendência em cristãos-novos? Ele também fez apontamentos importantes
sobre a questão de limites entre o Ceará e o Rio Grande do Norte e publicou o
livro Capitães-Mores do Rio Grande do Norte (1912). (400 nomes...,
2000).
Na ação executiva por cobranças de rendas de terras,
referentes ao Sítio Ubarana, em Santana do Matos, Francisco Tertulino da Cunha,
José Francisco da Fonseca, João Francisco da Fonseca e Joana Maria da Cunha,
viúva de Francisco da Fonseca, constituíram como seu procurador o Doutor Álvaro
Fragoso de Albuquerque, na cidade do Assú, em 6 de abril 1886. (Procuração
[...], 1886). No mesmo mês e ano, Minervino Lins Wanderley, proprietário do
referido sítio, fez um requerimento ao juiz de paz pedindo a penhora executiva
de cem mil réis para cada um dos quatro devedores e residentes nesse sítio:
Francisco Tertulino, José Francisco, João Francisco e Joana Maria. Dias depois,
na audiência de conciliação, os réus não concordaram em pagar as dívidas ao
proprietário do Sítio Ubarana. (Requerimento [...], 1886).
Noutras demandas de terras, encontramos Inácia
Puritana de Sá Albuquerque, moradora do Engenho Pindobinha, termo de Ipojuca,
vendendo uma parte de terras em Santana do Matos, em 1887, que ela havia
recebido por herança dos seus pais Afonso de Albuquerque Maranhão e Maria Anna
Francisca de Paula Cavalcante de Albuquerque Maranhão. A terra ficava na
fazenda Forquilha e foi vendida por cem mil réis ao comprador João Antônio
Severiano de Palhares, que pagou as despesas da transmissão e o traslado da
escritura particular de venda para o Fórum da Vila de Santana do Matos.
(Escritura [...], 1887). João de Palhares era Capitão da 3ª Companhia do
Batalhão nº 28 da Guarda Nacional, da Comarca de Macau, e casado com Maria
Freire das Neves. O casal também constituiu como seus procuradores, na Vila de
Santana do Matos em 1892, o Major João Francisco Barbalho Bezerra, Emídio
Bezerra da Costa Avelino e Doutor Manoel José Cristo. (Procuração [...], 1892).
3. As últimas vontades e as partilhas de bens de famílias
santanenses
Francisco da Silva de Carvalho faleceu em 22 de
fevereiro de 1875. Em 10 de abril daquele mesmo ano, o seu testamenteiro e
inventariante José Lucas de Sousa Barros apresentou, no cartório de Santana do
Matos, o traslado do testamento e a petição para a abertura do inventário dos
bens do falecido sogro, com a notificação dos herdeiros. No testamento, datado
de 5 de agosto de 1873, no Sítio Bom Sucesso, Francisco de Carvalho expressou
as suas últimas vontades, identificando as suas raízes, família e herdeiros:
Em nome de Deus Amém, eu Francisco da Silva de
Carvalho, estando de saúde e em meu perfeito juízo, mas temendo a morte, quero
fazer o meu testamento e disposição de última vontade e a faço da maneira
seguinte: declaro em primeiro lugar que sou católico romano, em cuja fé
protesto viver e morrer, e peço a Santíssima Virgem da Conceição seja a minha
protetora em toda a minha vida e na hora de minha morte. Declaro que sou
natural desta freguesia de Santana do Matos, outrora do Assú, e filho legítimo
de Antônio da Silva de Carvalho e Joana Perpétua de Mello, já falecidos.
Declaro que fui casado em primeira núpcia com Maria Joana, de quem tive uma
filha de nome Sabina e que a pouco faleceu deixando herdeiros. Declaro que
casei em segunda núpcia com Ignácia Martins da Fonseca, já falecida, de quem
também só tive uma filha de nome Raimunda, casada com o senhor José Lucas de
Sousa Barros, e por isto é esta e os meus netos como representantes de sua mãe
Sabina, os meus legítimos herdeiros; visto como não tive outros filhos. Declaro
que os bens que possuo serão aqueles que se acharem ao tempo do meu
falecimento. (Testamento-Inventário [...], 1875, p. 3-4).
O testador nomeou, além do genro José Lucas, mais dois
testamenteiros e administradores de seus bens: o sobrinho Alexandre José de
Souza e o Capitão Laurentino Minervino Fernandes de Sousa. Instituiu como
herdeira de sua terça a neta Belisa, filha da herdeira principal Raimunda
casada com José Lucas, em virtude do afeto devotado por essa neta ao avô. Para
isso, o testador declarou que o quinhão de terça fosse uma mesa grande.
(Testamento-Inventário [...], 1875). As mesas aparecem, nas partilhas, entre os
bens móveis importantes do aconchego doméstico. Francisco era tio paterno do
Barão de Serra Branca.
No inventário, em 1875, Alexandre José de Souza,
sobrinho do falecido, foi nomeado curador dos herdeiros órfãos. Além das duas
filhas Raimunda Fonseca e Sabina da Silva como herdeiras principais, aparecem
os herdeiros secundários do inventariado Francisco de Carvalho. Os netos foram
Lucina Adelaide Martins Fernandes casada com José Martins Ferreira da Costa;
Francisca Laurentina Fernandes de Sousa, viúva; Absalão Fernandes da Silva
Bacilon, solteiro; Rosalina Perolina da Silva, viúva; Fermina Maria Fernandes
da Silva, solteira, e Jesuína Marfisa da Silva Fernandes, falecida, que por ela
representam os seus filhos órfãos. Quanto aos bisnetos, apareceram Maria de 9
anos de idade; Manoel de 8 anos de idade e João de 7 anos de idade.
(Testamento-Inventário [...], 1875). E Absalão Fernandes foi o avô materno de
Aluízio Alves, ex-governador do Rio Grande do Norte. (Lyra, 2015).
Em 10 de janeiro de 1920, o escrivão e testamenteiro
Alexandre Correia Barbosa autuou o testamento dos falecidos Manoel Américo
Rodrigues Baracho e Antônia Maria Rodrigues Baracho, que eram irmãos. Os
testadores Manoel e Antônia declararam ser cristãos católicos, filhos do
Alferes Antônio Rodrigues Baracho e Quitéria Umbelina da Silva, e terem
nascido, respectivamente, em 1855 e 1843. Afirmaram ser brasileiros, solteiros,
naturais e moradores na fazenda Boa Vista, em Santana do Matos. Por não terem
descendentes diretos, os testadores constituíram como legítimos herdeiros os
seus irmãos Germano Manoel Américo Rodrigues Baracho e Germana Antônia Maria
Rodrigues Baracho. (Registro de testamento [...], 1920). Em 1861, na mesma
propriedade da Boa Vista, o Alferes Antônio Rodrigues foi o inventariante
meeiro da falecida esposa Quitéria Umbelina. (Inventário [...], 1861).
Os autos de inventário, sobretudo no século XIX,
exigiam a presença de um juiz, um escrivão, o inventariante (poderia ser o
cônjuge meeiro), o título de herdeiros, o curador ou tutor de órfãos, a
descrição do espólio, os avaliadores e partidores dos bens. Em 27 de setembro
de 1855, na cidade do Assú, foi aberto o inventário post-mortem de
Leonidia Francelina do Amor Divino pelo juiz Tenente Coronel José Carlos de
Carvalho. O viúvo meeiro Manoel Lopes Idalino prestou juramento como
inventariante. Os filhos herdeiros foram Maria (de 4 anos de idade), Francisca
(de 3 anos de idade) e Francisco (de 2 anos de idade). No arrolamento dos bens,
entre vacas, éguas, garrotes, cavalos e uma parte de terra no lugar Cacimba de
Baixo, aparece a escravizada Raimunda, que foi qualificada como crioula de
quinze anos, sendo avaliada pela quantia de duzentos e cinquenta mil réis.
(Inventário [...], 1855).
Leonidia Francelina era filha de Vicente Ferreira de
Lima e Joana Quitéria Veloso da Silveira, a qual faleceu em 5 de março de 1872,
no Sítio Tostado, em Santana do Matos. No inventário de Joana, naquele mesmo
ano, filhos e netos aparecem como herdeiros: Manoel Ferreira Lima casado com
Miquelina e moradores no lugar Pinturas; Belarmino José Geminiano casado com
Maria Joana e moradores na Serra do Meio; Miguel Francisco de Paula casado com
Panfila; José Ferreira Lima, solteiro e morador no Sítio Tostado; Maria
Ferreira Hostaliana da Silva, já falecida e representada por seus filhos
Antônio Aquelino e Adelfácio Ribeiro; Leonidia Francelina do Amor Divino, já
falecida e representada por seus filhos Maria Leonidia, casada com José Canuto,
Francisca Leonidia, casada com Estevão, e Francisco Lopes Idalino, solteiro, e
moradores no lugar Pinturas. (Inventário [...], 1872a). No inventário de
Leonídia Francelina, em 1855, não há referência ao domicílio dela com o esposo
e os filhos, mas é possível que já morassem em Pinturas (lugar que evoca
memórias dos povos originários) ou no Tostado.
Santana do Matos, cujo relevo “aplainado, pontilhado
de formas residuais da textura granítica”, de muitos tanques naturais, além da
vegetação seca de poucas árvores, “como umbuzeiro, catingueira e mandacaru”
(Bertrand, 2010, p. 69), viu a multiplicidade dos sítios e fazendas de criação
ao longo do tempo. Em 1867, no Sítio São José, foram arroladas, como espólio,
quatro vacas paridas, três novilhotas, uma égua velha, três potros, um cavalo
velho, e uma dívida, dentre outras, no valor de vinte mil réis ao credor
Vitorino José Barbosa, que era cunhado do inventariado Luiz da Rocha Pita,
falecido em 1866. A viúva meeira Leonarda Maria da Apresentação fez o juramento
como inventariante. Foram herdeiros Luiz Pedro da Fonseca Pita, Luiz Valcácio
da Rocha Pita, Torquato da Rocha Pita, Manoel Serapião da Rocha Pita, Francisco
da Circuncisão Pita Deus Dará, Aldonsa da Rocha Pita, Isabel Maria da Rocha
Pita, Helfina Fausta da Rocha Pita, João Luiz da Rocha Pita, falecido e
representado pela filha Maria, e Maria Generina Francelina da Silveira,
falecida e representada por seus filhos Joventino da Silveira Borges, João
Celso da Silveira Borges, Glicéria, Maria, Jovino, Ana, Honorina e Tereza.
(Inventário [...], 1867).
Em 1874, a viúva Leonarda Maria da Apresentação com o
seu irmão Vitorino José Barbosa, por seus procuradores Luiz Pedro da Fonseca
Pita e Manoel Barbosa Pereira (provavelmente era irmão de Leonarda e Vitorino),
moveram uma ação civil para tomarem posse, como legítimos herdeiros, dos
escravizados Ângela, Francisco e Aproniano, que faziam parte do espólio do
falecido pai José Felix Barbosa Pimentel. Os escravizados estavam sob o poder
de Vicente Ferreira de Lima, o qual havia contestado a partilha dos bens desse
inventário e pretendia vender os três cativos. Na ação judicial, Leonarda,
Vitorino e Manoel pediram ao juiz que determinasse o mandado de sequestro sobre
os escravizados e que estes fossem enviados a depositário idôneo para a
garantia de direitos. (Juízo [...], 1874). O registro, porém, não sinalizou a
qualificação, a idade e o suposto parentesco dos três indivíduos cativos.
Irineu Brasiliano de Carvalho e Silva, médico,
constituiu o seu irmão Felipe Nery de Carvalho e Silva e os primos Manoel da
Silveira Borges, Absalão Fernandes da Silva e Alexandre José de Souza como seus
procuradores no inventário da falecida mãe Maria da Silva Veloso, em 1870.
Irineu era casado com Maria Cristina Antunes de Carvalho e Silva e moravam em
Aracati, na Província do Ceará. O viúvo meeiro Antônio de Carvalho e Silva
apresentou os três filhos herdeiros: Felipe Nery casado com Belizária Wanderley
e moradores na Serra Branca, Irineu Brasiliano casado com Maria Cristina, e Ana
Joaquina da Silveira, já falecida e representada por seus filhos Antônio de
Carvalho e Souza e Manoel de Carvalho e Souza, os quais estavam estudando no
Recife. E Alexandre José de Souza e João Antônio de Souza foram nomeados,
respectivamente, curador e procurador desses netos órfãos da inventariada. Na
partilha dos bens, como família abastada, havia talhares de prata, objetos de
ferro, tachos de cobre, mesa grande de cumarú com gavetas, uma cômoda de angico
com gavetas, um jogo de malas de pregaria com fechaduras, um baú velho etc.,
além dos bens semoventes vacum e cavalar. (Inventário [...], 1870).
Em 1872, Manoel Duarte Ferreira (filho), sobrinho da
falecida Isabel Correia da Costa, que não deixou filhos, entrou com uma ação
judicial para que o viúvo meeiro, Capitão João Martins de Macedo, procedesse
com o inventário post-mortem da falecida tia. O casal morava no Sítio
Conceição. Os herdeiros foram todos os irmãos de Isabel: Maria da Silva Freire,
viúva, e os demais irmãos já falecidos Antônio Lopes de Macedo, Faustino
Correia Barbosa, Bernarda da Costa Oliveira, José Nunes de Oliveira, Alexandre
Ferreira da Costa, Manoel Duarte Ferreira, Mathildes Correia da Costa, Ana
Correia da Costa e Mariana Correia da Costa, os quais foram representados por
seus filhos. (Inventário [...], 1872b). Esse inventário revela uma complexa
rede de parentesco espalhada por lugares, entre outros, como Angicos,
Ceará-Mirim, no Rio Grande do Norte, e Mamanguape, na Paraíba.
Mas o testamento de Isabel Correia da Costa foi
encontrado no Fórum da Comarca do Assú. Em 1856, no Sítio Conceição, em Santana
do Matos, a testadora Isabel nomeou como seus testamenteiros o próprio marido
Capitão João Martins de Macedo, o Major Mathias de Macedo Cabral e João de
Barros de Oliveira (provável descendente homônimo do sesmeiro em 1742). Ela
declarou que era natural da Freguesia do Assú, filha legítima de José Nunes de
Oliveira e Isabel Correia de Brito, e casada, por carta de metade, com o Capitão
João Martins de Macedo. Sem filhos e sem herdeiros legítimos. Possuía sete
escravos: Miguel, Faustino, Luiz, Úrsula, Constância, Luciana e Justino. Era
proprietária de uma parte de terras no Sítio Conceição com casa de vivenda e
outra casa de pedra e cal na Vila de Santana do Matos. Não tinha dívidas ativas
nem passivas. Constituía, então, como único herdeiro de sua fazenda o esposo
João Martins. A testadora ainda declarou que seu corpo fosse envolto em hábito
branco e sepultado na Igreja Matriz de Santana do Matos, com missa de corpo
presente e esmola de costume, além de meia capela de missa em sufrágio de sua
alma. (Testamento [...], 1856). Provavelmente, a família da testadora e
inventariada Isabel aproveitou a condição do casamento dela (carta de metade)
para requerer judicialmente 50% dos bens da falecida, em 1872, o que foi
julgado procedente.
Quanto à senhora Maria Beatriz Paz Barreto[3],
inventariada em 1876, era possuidora de um cabedal importante no Sítio Picada.
No espólio, declarado por Manoel de Mello Montenegro Pessoa e outros herdeiros,
havia peças de prata, cobre, mesa de cumarú com gavetas, armário de guarda
louças, máquina de descaroçar algodão e, entre os bens semoventes,
destacavam-se, por exemplo, cento e oitenta vacas no valor total de três contos
e novecentos e sessenta mil réis. Também foi identificado o escravizado
Antônio, pardo. (Inventário [...], 1876). Já no inventário da viúva Maria
Francisca de Mello, na Povoação de São Rafael, em 1873, a falecida deixou uma
dívida de vinte e cinco mil réis ao negociante João de Góis de Vasconcelos
Borba, bem como o escravizado Bernardino, pardo, de trinta anos de idade,
solteiro e natural do Rio Grande do Norte, tendo sido avaliado pelo juiz no
valor de quinhentos mil réis. E José Teixeira de Mello, filho de Maria
Francisca, foi o inventariante. (Inventário [...], 1873).
João Domingos da Cunha Lages, falecido em 1886, deixou
a viúva Raimunda Paula de Oliveira e os filhos órfãos Olímpia, de 4 anos de
idade, e Manoel, de 3 anos de idade. Dos bens partilhados entre a viúva e os
herdeiros, aparecem duas mesas com tamboretes, vacas, bezerros, garrote,
cavalos e duas partes de terras no Sítio Caiçara com uma pequena casa, além de
uma dívida passiva com a firma Machado e Pereira da praça de Pernambuco. Depois
do pagamento da referida dívida e das custas do inventário, a viúva recebeu, em
sua meação, o valor de oitenta e oito mil e cem réis e cada filho do casal
recebeu a quantia igual de quarenta e quatro mil e cinquenta réis. (Inventário
[...], 1886).
Um lote de terras no Sítio Caraú foi dividido em dez
partes iguais no valor de quarenta mil réis para cada herdeiro. Tratava-se do
inventário de João Francisco da Cunha, falecido em 1913, cuja inventariante foi
a viúva meeira Bertoleza Francisca da Cunha. Foram herdeiros João Francisco da
Cunha, Maria Ferreira da Silva, Manoel Francisco da Cunha, José Francisco da
Cunha, Miguel Francisco da Cunha, Francisco João da Cunha, Alexandre Francisco
da Cunha Sobrinho, Ana Francisca da Cunha, Joana Francisca da Cunha, Isabel
Francisca da Cunha, já falecida e representada por seu marido Luiz Ferreira da
Silva e seus filhos João, Luiz, Manoel, Joana Maria e Maria de Jesus.
(Inventário [...], 1913).
No Sítio Sacramentinho, em 27 de fevereiro de 1920,
abriu-se o inventário da falecida Francisca Maria da Rocha, que foi casada com
Manoel José da Rocha. José, Francisco, Alonso já falecido, Joana, Maria
Francisca e mais duas Marias compuseram o título de herdeiros da mãe
inventariada. As crianças, abaixo dos 10 anos de idade, dividiriam com o pai
Manoel José, o viúvo meeiro, as nove vacas, cinco garrotes, uma potrinha, três
cavalos, uma égua velha, três jumentos mansos, quinze cabras e oito ovelhas;
quatro baús, uma banca, uma máquina de costura, uma mesa, um cilhão velho e uma
sela para homem; uma casa de telhas e taipa com um cercado. Ainda constavam
dezoito braças de terra no município de Assú. (Inventário [...], 1920). É
provável que a falecida Francisca da Rocha fosse uma costureira e, no
Recenseamento de 1872, esta profissão se destacava dentre as ocupações na vila
santanense.
4. “Sangue bastante pelo chão” em Tanques Pretos
Felix Antônio do Nascimento, agricultor, voltava do
roçado acompanhado do sobrinho Manoel Roberto da Cruz, em 2 de março de 1908,
quando foi surpreendido pelos seus assassinos José Nunes da Silva, Apolinário
de Tal e Antônio Chole no lugar Tanques Pretos. De acordo com José Cassimiro
Barbosa, Delegado de Polícia em Santana do Matos, a vítima Felix Antônio sofreu
disparos de rifles na cabeça, tórax, região lombar e joelho direito, conforme o
exame cadavérico realizado na residência de João Felix de Maria, que era um
provável parente do agricultor executado. Além do sobrinho da vítima, foram
intimadas as seguintes testemunhas: Adolfo José das Chagas (morador do Sítio
Tanques Pretos), Manoel Raimundo de Souza (morador do Tanques Pretos), Tomaz
Ribeiro de Souza (morador do Sítio Curicaca), José Justino Pereira (morador do
Sítio Acauã) e Francisco Truba (morador da Vila de Santana do Matos). (Juízo
[...], 1908).
Manoel Roberto, sobrinho da vítima e testemunha
ocular, e as outras testemunhas relataram que o acusado José Nunes da Silva era
morador do Sítio Riachão, do Distrito de Flores (atual município de Florânia no
Rio Grande do Norte), e que teria uma rixa por disputas de terra com o
agricultor Felix. E Nunes teria, no ato da execução da vítima, que não teve
chance de defesa, pronunciado estas palavras: “negro do diabo”. Percebemos que
Felix, provavelmente, era um homem negro. Ademais, algumas testemunhas só ouviram
os disparos de longe e sabiam que assassino e vítima eram “intrigados por
questões de terra”. A testemunha Adolfo das Chagas declarou, nos autos, que
dias depois da ocorrência foi ao local da execução, onde se destacava uma
árvore denominada Jucuri e que teria observado “os vestígios do crime,
notando-se sangue bastante pelo chão.” (Juízo [...], 1908, p. 14). Existiriam
outras motivações para o crime subjacentes à alegada nos autos desse processo?
Racismo? Será que os acusados foram julgados, condenados ou absolvidos?
Entretanto, no município de Florânia encontra-se
arquivado, no Fórum Judiciário, um inquérito policial sobre esse mesmo
assassinato de Félix Antônio do Nascimento. Nos autos, há uma outra versão para
o crime de morte. Félix Antônio seria desertor do Exército brasileiro e havia
um mandado de prisão expedido pelo Delegado de Polícia de Flores (atual
Florânia). O acusado do crime de deserção teria reagido à prisão, insurgindo-se
contra o inspetor de quarteirão José Nunes da Silva Paz e o oficial de justiça
Apolinário Ferreira de Macedo. Esse inquérito ainda informa que Félix teria
investido contra esses homens com uma foice bradando que “matava um diabo
desses”. As testemunhas, quase todas moradoras do Sítio Riachão, identificadas
como Antônio Fernandes de Morais, Francisco Geraldo das Chagas e Luiz Gonzaga
do Nascimento sustentaram a versão de que Félix resistiu à prisão e tentou
golpear com uma foice os agentes da delegacia. Assim, conforme essa nova versão
do homicídio, é provável que houve absolvição dos assassinos do agricultor.
(Inquérito [...], 1908, p. 9).
5. Considerações finais
A
análise das fontes forenses de Santana do Matos revela um complexo espaço
material e social, contribuindo para pesquisas historiográficas e genealógicas.
As peculiaridades dos lugares com alguns nomes evocativos de memórias
ancestrais, a espacialização dos sítios, os rebanhos de gado, as casas e seus
interiores com mesas, baús, malas de pregarias e outros objetos pessoais e de
usos domésticos, os escravizados no meio do espólio de determinados inventários
post-mortem, os conflitos sobre terras, além das manifestações
religiosas e de afetos por testadores em suas últimas vontades, foram
descortinando a vila santanense na transição do século XIX para o século XX.
Várias
partilhas de bens apontaram para os passos de uma mesma família com suas redes
de consanguinidades, sociabilidades, interesses e disputas, a exemplo dos
Carvalho e Silva, Silveira Borges e Rocha Pita. Esses núcleos familiares
compuseram uma elite rural, destoando de outras famílias santanenses que não
tinham recursos financeiros, título de terras e bens a inventariar depois da
morte, as quais sofreram uma invisibilidade social e documental.
As
diversas fontes deste estudo puderam dialogar com outras pesquisas sobre
Santana do Matos para propormos investigações sobre as comunidades quilombolas
e sobre os ricos vestígios materiais deixados, em muitos lugares, pelos povos
originários da região. Alvitramos novas pesquisas, por exemplo, sobre a cultura
material advinda dos bens arrolados nos inventários post-mortem, e uma
pesquisa mais acurada sobre os escravizados inscritos nesses registros
judiciais. E, para além dos dados dos censos populacionais, os registros
forenses podem ser articulados aos registros paroquiais e cartoriais,
principalmente na Genealogia. Ademais, o confronto dos dois inquéritos
policiais sobre o assassinato de Félix Antônio do Nascimento mostrou diferentes
versões dos fatos com o concurso de várias testemunhas a favor ou contra o
agricultor morto.
Referências
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da recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução: Paulo
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INVENTÁRIO post-mortem de Leonidia Francelina do Amor Divino.
Inventariante: Manoel Lopes Idalino. Assú, 1855.
INVENTÁRIO post-mortem de Joana Quitéria Veloso da Silveira.
Inventariante: Vicente Ferreira de Lima. Sítio Tostado, Santana do Matos,
1872a.
INVENTÁRIO post-mortem de Luís da Rocha Pita. Inventariante:
Leonarda Maria da Apresentação. Sítio São José, termo do Assú, 1867.
INVENTÁRIO post-mortem de Maria da Silva Veloso. Inventariante:
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INVENTÁRIO post-mortem de Isabel Correia da Costa. Inventariante:
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INVENTÁRIO post-mortem de Maria Beatriz Paz Barreto.
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Montenegro Pessoa e outros. Sítio Picada, Santana do Matos, 1876.
INVENTÁRIO post-mortem de Maria Francisca de Mello.
Inventariante: José Teixeira de Mello. Povoação de São Rafael, Santana do
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INVENTÁRIO post-mortem de João Francisco da Cunha. Inventariante:
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JUÍZO Distrital da Vila de Santana do Matos. Sumário de culpa. Vítima:
Felix Antônio do Nascimento. Réus: José Nunes da Silva, Apolinário de Tal e
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JUIZO Municipal de Órfãos de Santana do Matos. Ação Civil. Autores: Luiz
Pedro da Fonseca Pita, Manoel Barbosa Pereira e Vitorino José Barbosa. Santana
do Matos, 1874.
PROCURAÇÃO que fazem o Tenente Felipe Nery de Carvalho e Silva e sua
mulher D. Belizária Wanderley de Carvalho e Silva. Procuradores: Doutor Vicente
Simões Pereira de Lemos e João Domingos da Cunha Lages. Santana do Matos, 1883.
PROCURAÇÃO que fazem Francisco Tertulino da Cunha, José Francisco da
Fonseca, João Francisco da Fonseca e Joana Maria da Cunha. Procurador: Doutor
Álvaro Fragoso de Albuquerque. Assú, 1886.
PROCURAÇÃO que fazem João Antônio Severiano de Palhares, capitão da
Guarda Nacional da Comarca de Macau, e sua mulher Maria Freire das Neves.
Procuradores: Major João Francisco Barbalho Bezerra, Emídio Bezerra da Costa
Avelino e Doutor Manoel José Cristo. Santana do Matos, 1892.
REGISTRO de Testamento de Manoel Américo Rodrigues Baracho e Antônia
Maria Rodrigues Baracho. Testamenteiro: Alexandre Severiano Correia Barbosa.
Santana do Matos, 1920.
REQUERIMENTO de Minervino Lins Wanderley ao Juiz de Paz. Assú, 1886.
TESTAMENTO de Isabel Correia da Costa. Testamenteiros: Capitão João
Martins de Macedo, Major Mathias de Macedo Cabral e João de Barros de Oliveira.
Sítio Conceição, Vila de Santana do Matos, Comarca do Assú, 1856.
TESTAMENTO-INVENTÁRIO de Francisco da Silva de Carvalho. Testamenteiro e
inventariante: José Lucas de Sousa Barros. Santana do Matos, 1875.
TRASLADO da Carta de Data e Sesmaria de 1742. Sesmeiro: João de Barros
de Oliveira. Assú, 1883.
400 nomes de
Natal. Coordenação Rejane Cardoso e redação Deífilo Gurgel et al. Natal,
RN: Prefeitura Municipal de Natal, 2000.
[1]
Graduado e Mestre em História
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisador em
História e Genealogia. Membro da Comissão Editorial do periódico eletrônico
BiblioCanto (UFRN). Técnico-Administrativo em Educação da UFRN.
[2] Pesquisador em Genealogia.
Policial Militar do Rio Grande do Norte.
[3] Maria Beatriz Paz Barreto casou-se
com Manoel de Mello Montenegro Pessoa, em 08 de janeiro de 1835, na Freguesia
do Assú, Rio Grande do Norte. Ele era filho de Manoel de Mello Montenegro
Pessoa e Ângela Garcia de Araújo Freire. E ela era filha do Capitão Manoel
Varela Barca e D. Francisca Ferreira Souto. (Casamento [...], 1823-1862).