Copiada por João Felipe da Trindade
Natal, RN
Do livro “O Brasil de Américo
Vespúcio”, de autoria de Riccardo Fontana, Editado pela UnB, extraímos uma carta
que interessa a todos norte-rio-grandenses. Ricardo, italiano de naturalidade, casou-se
com uma brasileira e veio morar no Brasil.
Nessa carta a confirmação da
posse das terras para o Rei Dom Manuel, que se realizou com o famoso Marco de Touros,
que se encontra, hoje, na Fortaleza dos Reis Magos. Mais ainda a história
trágica do canibalismo dos nossos índios. Vale a pena ler uma carta escrita de
próprio punho por quem esteve aqui na nossa Costa. Aliás, essa foi a segunda
vez que andou pelo Rio Grande do Norte, sendo a primeira patrocinadas por Dom
Fernando de Castela.
Encontrava-me em Sevilha para
descansar de minhas tão grandes fadigas que tinha afrontado nestas duas viagens
feitas para o sereníssimo rei Fernando de Castela nas Índias Ocidentais, e com
vontade de voltar à terra das pérolas, quando o destino, não contente com as
minhas tribulações, não sei como pôs na mente deste sereníssimo rei dom Manuel
de Portugal querer servir-se de mim.
Estando em Sevilha sem absolutamente imaginar ir a Portugal, chegou a mim um
mensageiro com uma carta de sua Real Coroa, onde me rogava que viesse a Lisboa
falar com Sua Alteza, prometendo oferecer-me recompensa. Fui aconselhado a que
não fosse, mandei de volta o mensageiro dizendo que estava mal e que, quando me
tivesse restabelecido, Sua Alteza, poderia então contar com os meus serviços e
faria quanto me ordenasse. Visto que não podia contar comigo, decidiu mandar-me
Giuliano di Bartolomeu di Giocondo, residente em Lisboa, com a missão de
levar-me de qualquer maneira. O dito Giuliano veio a Sevilha e, por causa de
sua vinda e dos seus rogos, fui forçado a vir, de forma que a minha partida foi
mal interpretada por quantos me conheciam, pois partia de Castela onde recebera
honrarias e o rei me tinha em boa conta; e a coisa pior foi que parti como
hóspede sem ser saudado. Apresentando-me diante deste rei,k ele mostrou ter
prazer com a minha vinda e pediu-me que partisse com três navios seus que
estavam prontos para ir descobrir novas terras. E como o pedido de um rei é uma
ordem, tive de consentir em quanto me rogava.
Zarpamos deste porto de Lisboa
com três navios de reconhecimento, no dia 13 de maio de 1501, e tomamos nossa
derrota diretos à ilha da Grande Canária e passamos, sem desembarcar, à vista
dela e dali seguimos costeando a orla da África pela parte ocidental. Nesta
cosa nos entregamos à pesca de uma espécie de peixes chamados pargos; ali nos
detivemos por três dias e seguimos para costa da Etiópia (África negra), para um porto que se chama Beseneghe (Dacar,
Senegal), que se encontra dentro da zona tórrida, sobre o qual o Polo
Setentrional se eleva a 14º e meio, estando situado no primeiro clima; ali
ficamos onze dias reabastecendo-nos de água e lenha. Com efeito, a minha
intenção era navegar para o austro atravessando o golfo (oceano) Atlântico.
Partimos deste porto da Etiópia e navegamos com vento sudoeste tomando (a
direção) de uma quarta de meio-dia, de modo que, em 97 dias chegamos a sua
terra que se encontrava a setecentas léguas para sudoeste do dito porto.
Durante esses 97 dias deparamos com o pior tempo que mal poderia enfrentar quem
navega no mar, por causa de muitos aguaceiros, redemoinhos e tormentas que nos
aconteceram, pois viajamos numa estação muito adversa, devido ao fato de a
característica da nossa navegação ser continuamente paralela à linha equinocial
(onde no mês de junho é inverno) e descobrimos que o dia era igual à noite e
que a sombra era contínua para o sul. Prouve a Deus mostrar-nos uma nova terra,
o que ocorreu no dia 17 de agosto (1501). Ali ancoramos à distancia de meia
légua, arriamos os nossos batéis e fomos ver se a terra era habitada e por qual
tipo de gente. Descobrimos que era habitada por gente pior que animais.
Contudo, poderás entender que no começo não vimos, mas percebemos bem que era
habitada graças a muitos indícios que se viam. Tomamos posse daquela (terra)
por aquele sereníssimo rei. Achamos que era uma terra muito amena, verdejante e
de boa aparência. Encontrava-se a 5º par lá da linha equinocial rumo sul e, por
isso, não retornamos aos navios e, por termos grande necessidade de água e
lenha concordamos em voltar a terra no dia seguinte para nos abastecermos do
necessário. Estando em terra, avistamos gente no alto do monte que (nos)
observava sem ousar descer, pois estavam nus e tinham a mesma cor e feições dos
outros descobertos nas viagens passadas por mim para o rei de Castela.
Esforçamo-nos com eles para que
viessem falar conosco, mas jamais conseguimos tranquilizá-los, tanto que não
tiveram confiança em nós. Dada a sua obstinação (e por já ser tarde), voltamos
aos navios, deixando-lhes em terra muitos guizos, espelhos e outras coisas à
vista deles.
Quando chegamos alto-mar,
desceram do monte e vieram (buscar) as coisas que deixamos para eles, mostrando
ter grande maravilha. Nesse dia, somente nos abastecemos de água.
Na manhã seguinte, vimos dos
navios que a gente fazia muita fumaça em terra, pensamos que nos chamavam,
fomos a terra e ali comprovamos que tinham vindo muitas tribos e, não obstante,
permaneciam distantes de nós e faziam acenos para que seguíssemos com eles para
o interior. Por isso, dois dos nossos cristãos vieram rogar ao capitão que lhe
desse licença para correrem o risco de
ir com eles a terra a fim de observarem que gente era e se possuía alguma
riqueza ou especiarias ou drogas. Tanto instaram que o capitão foi convencido
(a deixá-los ir). Tendo recolhido muito material de resgate, partiram com
instruções de não demorarem mais de cinco dias em voltar, pois só por esse
período os iríamos esperar.
Encaminharam-se para terra e nós
ficamos esperando por eles nos navios. Quase todo dia vinha gente à praia, mas
não queriam nos falar. No sétimo dia, fomos a terra e notamos que haviam
trazido suas mulheres, e, mal desembarcarmos, os homens daquela terra mandaram
muitas delas falar conosco, e visto que não se fiavam em nós, decidimos
mandar-lhes um homem dos nossos que era jovem muito oferecido, e nós, para
ajudá-lo, entramos nos batéis e ele caminhou em direção às mulheres. Chegando
junto delas, rodearam-no, tocando-o e olhando-o e fazendo cara de espanto. Enquanto
isto acontecia, vimos uma mulher descer do monte trazendo na mão um grande pau;
mal chegou aonde estava o nosso cristão veio atrás dele e, levantando o pau, deu-lhe
uma pancada tão violenta que o estendeu morto por terra. Imediatamente as
outras mulheres o agarraram pelos pés e o arrastaram para o monte, e os homens
desceram à praia e com os seus arcos começaram a atirar-nos setas, infundindo
tanto medo em nossa gente (os batéis estavam encalhados em bancos de areia)
que, devido às inúmeras setas que se cravavam nos batéis, ninguém conseguia
pegar em armas. Não obstante, disparamos contra eles quatro tiros de bombarda,
mas sem os atingir. Porém, ouvindo o estrondo, fugiram todos para o monte onde
estavam as mulheres despedaçando o cristão e assando-o à nossa vista numa
grande fogueira que tinham feito, mostrando os diversos pedaços e comendo. Os
homens, por sinais, queriam explicar como haviam morto e devorado os dois, o
que muito nos angustiou. Ver com os nossos olhos a crueldade que fazia com o
morto foi para todos nós uma injúria intolerável.
Mais de quarenta dos nossos
tinham intenção de desembarcar e vingar uma tão cruel morte e um ato bestial e
desumano, mas o capitão-mor não quis permitir e nós ficamos cheios de tanta
raiva que nos afastamos daquela gente com má vontade e envergonhando-nos muito
do nosso capitão.
Partimos desse lugar e iniciamos
a nossa navegação entre levante e sueste, e assim íamos costeando e fazendo
muitas escalas, sem encontrar mais gente com que quiséssemos conversar.
Navegamos tanto que notamos que a terra fazia a volta para sudoeste. Mal
dobramos um promontório ao qual demos o nome de cabo de Santo Agostinho,
começamos a navegar para sudoeste.
Este promontório dista da
referida terra que vimos, onde mataram os cristãos, 150 léguas para levante; e
este mesmo promontório encontra-se 8º além da linha equinocial para sul.
Enquanto navegávamos, avistamos
um dia muita gente que estava na praia admirando a beleza dos nossos navios,
continuando a navegar fomos em sua direção, ancoramos num bom local,
desembarcamos com batéis e notamos que esta gente era de melhor nível que a
precedente. Embora custasse domesticá-la, fizemos amizade e negociamos com ela.
Permanecemos neste lugar cinco dias e ali achamos cássia muito grossa, verde e
seca (de altura superior) ao cume das árvores. Decidimos levar dois homens
deste lugar, a fim de nos ensinarem a língua; vieram três deles, de livre
vontade, para irem a Portugal.
Já cansado de tanto escrever,
saiba que partimos deste porto navegando sempre para sudoeste à vista de terra,
fazendo continuamente muitas escalas e falando com numerosa gente.
Andamos tanto em direção ao sul
que já estávamos para além do Trópico de Capricórnio, onde o Polo Meridional se
eleva 32º acima do horizonte. Já havíamos perdido completamente a Ursa Menor, e
a Maior aparecia muito baixa e quase se mostrava no limite do horizonte,
orientando-nos pelas estrelas do outro Polo Meridional, que são numerosas e
bastante maiores e mais brilhantes que as do nosso polo.
Desenhei as figuras da maior
parte delas e sobretudo das de primeira e maior grandeza, com a descrição de
seus círculos que faziam em torno do Polo Austral e com a descrição de seus
diâmetros e semidiametros, como se poderá ver nas minhas Quatro Jornadas.
Percorremos cerca de 750 légua
desta costa, ou seja 150 do cabo de Santo Agostinho para o poente, e seiscentos
para o sudoeste.
Se quisesse relatar de novo as coisa que vi nesta costa e aquilo
por que passamos, não me bastariam outras tantas folhas.
Nesta costa não vimos coisas
preciosas, salvo infinitas árvores de verzino e de cássia e as que produzem
a mirra, e outras maravilhas da natureza
que não se podem contar. E sendo já transcorridos dez meses de viagem, e visto
que nesta terra não achamos nenhum minério, decidimos afastar-nos dela e
seguir, enfrentando o mar em outra parte.
Feita a nossa reunião, foi
deliberado que se continuasse aquela navegação que me parecesse oportuna, e
foi-me confiado o comando total da armada. Ordenei então que toda a tripulação
da frota fizesse reabastecimento de água e de lenha para seis meses, sendo este
o período que os oficiais dos navios julgaram possível navegar com tais
aprovisionamentos.
Terminado o reabastecimento
nesta terra, começamos a nossa navegação para sueste, sendo o dia 15 de
fevereiro (1502), quando o Sol se ia avizinhando do equinócio e voltava para
este nosso Hemisfério Setentrional. E tanto navegamos com este vento que nos
distanciamos tanto que o Polo Meridional se erguia bem a 52º fora do nosso
horizonte. E não víamos mais nem as estrelas da Ursa Menor nem as da Ursa
Maior. Estávamos já distantes do porto de onde partimos umas quinhentas léguas
para sueste, e isto ocorreu no dia 3 de abril. Nesse dia começou no mar uma
tempestade tão violenta que nos fez amainar todas as nossas velas, que corriam
sobre a árvore nua com muito vento, que era sudoeste com enormes ondas. E o ar
estava muito tormentoso e a tempestade era tão forte que toda a frota tinha um
grande temor. As noites eram muito longas, tanto que no dia 7 de abril tivemos
uma noite que durou quinze horas, pois o Sol se encontrava no final de Áries e
nesta região era inverno, como bem podes avaliar.
Prosseguindo nesta tempestade,
no dia 7 de abril avistamos uma nova terra, que percorremos por cerca de vinte
léguas e observamos que toda ela era uma costa selvagem e não achamos nenhum
porto ou população. Julgo que por ser o frio tão intenso nenhum membro da
tripulação conseguia encontra defesa ou suportá-lo. De modo que, vendo-nos em
tamanho perigo tormenta que mal se podia enxergar, de um para outro navio, por
causa das grandes ondas que se formavam e pela forte cerração, decidimos junto
com o capitão-mor fazer sinal à frota para que nos alcançasse e nos afastássemos
da terra e tornássemos a caminho de Portugal.
Foi uma ótima decisão. Pois
certamente, se tivéssemos demorado mais aquela noite, estaríamos perdidos. Com
efeito, como recebêssemos o vento de popa, nessa noite e no dia seguinte,
voltou tão forte a tormenta que estivemos em dúvida de nos perder e tivemos de
fazer ritos e outras cerimônias, como é uso dos marinheiros em tais aflições.
Navegamos por cinco dias e, como quer que seja, íamos nos aproximando da linha
equinocial e com um tempo e mar mais moderados, e prouve a Deus pôr-nos a salvo
de um tão grande perigo. A nossa navegação era com vento entre norte e
nordeste, visto que a nossa intenção era ir reconhecer a costa da Etiópia, já
que estávamos distante dela 1300 léguas, no golfo do mar Atlântico e, com a
graça de Deus, a 10 de maio alcançamos
uma terra a sul que se chama Serra Leoa, onde permanecemos quinze dias
concedendo-nos um pouco de restauro. Daqui partimos tomando nosso rumo às ilhas
dos Açores, distantes daquele lugar de Serra Leoa cerca de 750 léguas, e
chegamos às ilhas no fim de julho, onde ficamos outros quinze dias desfrutando
de algum repouso. Dali partimos para Lisboa, de onde distávamos mais de
trezentas léguas para ocidente, e entramos neste porto de Lisboa no dia 7 de
setembro de 1502 sãos e salvos, graças a Deus, somente com dois navios, pois o
outro o queimamos na Serra Leoa, por não poder mais navegar. Levamos nesta
viagem cerca de quinze meses, durante os quais navegamos sem ver a estrela do Norte
ou a Ursa Maior e Menor, que se chamam de chifre, orientando-nos pelas estrelas
do outro polo. Isto foi o que eu vi nesta viagem ou jornada feita para o sereníssimo
rei de Portugal.
Marco da Posse de Portugal, trazida por Américo Vespúcio |