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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Joaquim Fabrício Gomes de Souza



Joaquim Fabrício Gomes de Souza
Por João Felipe da Trindade, ex-aluno e ex-professor do Atheneu
Procurei maiores informações sobre o professor Joaquim Fabrício Gomes de Souza, em antigos jornais da Hemeroteca Nacional. Sua vida não foi fácil.

Fui encontrar seu óbito em um jornal do Pará, “República”, que noticiava que tinha falecido Joaquim Fabrício Gomes de Sousa, rio-grandense do norte, pardo, 45 anos de insuficiência mitral. Seu sepultamento foi no dia 2 de maio de 1900, no cemitério Santa Isabel.
Em março de 1877, a “Gazeta de Notícias” informava sua chegada ao Porto do Rio de Janeiro, e nesse mesmo ano iniciava seus estudos na Academia Imperial de Belas Artes, onde foi premiado, por diversas vezes, com menção honrosa e medalha de prata, até a conclusão do curso. 

Nos seus contratos para servir no Internato do Imperial Colégio Pedro II, como coadjutor de desenho, eram seus endereços, primeiramente, R. General Câmara, 141, e, posteriormente, Largo de São Domingos, 8, sendo um desses contratos do ano de 1882. Foram renovados, pelo menos, até 1886.

Em 1891 foi eleito sócio benemérito do Liceu Engenho Velho, pelos serviços prestados.

Pelos relatórios dos Governadores, descubro que foi contratado para reger por 3 anos a cadeira de Desenho, do Atheneu, em maio de 1893, tendo rescendido o contrato em abril de 1895, por ter sido nomeado auxiliar técnico da Comissão de melhoramento do Porto de Natal, no começo de 1895. Em outubro, desse mesmo ano de 1895, foi exonerado.

Foi novamente contratado em setembro de 1896 para a cadeira de Desenho e Caligrafia, do mesmo Atheneu, por mais três anos. Em abril de 1897 recebeu uma licença de três meses para tratar da saúde.

Em um artigo no Diário do Natal, datado de 1907, seu ex-aluno, no Rio de Janeiro, o polivalente Raul Pederneiras, caricaturista, escritor, advogado, delegado de polícia, professor de Faculdade, escreveu, sob o título “Um Vencido”:

Conheci-o no seu tugúrio modesto, em uma carunchosa mansarda do Largo de S. Domingos, vivendo a vida de isolado, em concentração talvez de incompreendido.

Vivia de lições particulares de desenho, e de um ou outro retrato a óleo, que a burguesia balofa lhe encomendava, de onde em onde.

Pobre, paupérrimo, com a sua infalível sobrecasaca surrada, mas limpa, o seu chapéu de abas largas, afogado na vasta cabeleira negra, e seu perfil de filho do norte, tipo legítimo de caboclo, amorenado e simpático, fazia transparecer um quê de bondade, destacando-se no olhar inteligente e vivo o brilho da audácia incubada, de concepção por vir.
Raramente ria, e quando, no seu mister de professor de desenho aturando as minhas aquarelas ao ar livre  ouvia uma pilhéria inócua ou uma barbaridade de trocadilho, franzia levemente os lábios, em um gesto bondoso de aplauso, para logo depois cerrar o sobrecenho e concentrar-se no trabalho.

Fôra meu primeiro mestre, e como tal achava o discípulo rebelde, desobediente, revoltado. Censurava continuamente a caricatura, chegando a proibi-la por prejudicial ao desenho, mas no fundo, intimamente, deixava-se ficar, mudo, observador, horas e horas apreciando as primeiras manifestações de minhas “charges” e de meus “calungas”, e terminava por ceder, dizendo que isso era “veia”, era “tendência, que não conseguia evitar.

Um ano a fio, depois de deixar a Escola de Belas Artes, tinha eu visita hebdomária desse concentrado mestre que vinha ver o estado de adiantamento do discípulo, estabelecendo um método que me parecia seu, unicamente seu no mistifório dos métodos que pululavam então. Não admitia cópia de estampa, pois, para ele desenhar bem, era ver bem, cópia de estampa era escravizar estilo e reproduzir o que outrem via. Dava preferência para os estudos do natural, para a observação dos objetos e para o fogo das expressões. Forte em anatomia, atirava no papel a “grafite”, em bosquejo certo as contexturas musculares do corpo humano, ou as articulações nervosas de uma rã. Em perspectiva, dizem possuir um livro precioso, adotava um sistema prático e de eficácia provada, que fez nomeada nessa época.

Ganhei, em um ano de aprendizagem, o que não me proporcionara um lustro de trabalho maquinal sem orientação, na escola, onde o lente se limitava a corrigir e passar adiante sem proferir palavras.

Mais tarde, o caboclo desaparecera, não mais dando notícias suas. Saudoso, fui procurá-lo na mansarda, estava deserta. Indaguei dos amigos e conterrâneos; nem uma notícia certa, apenas a indicação vaga de que partira para o norte.

Soube depois, pelos seus colegas de turma, que rompera na arte como uma revelação completa e subitamente desaparecera na concentração intima de incompreendido, procurando evitar sempre as companhias, as reuniões, as palestras, cenobita do espírito enclausurado na ermida branda do silêncio.

Nada deixou definitivo, apenas há, aqui e ali, um ou outro estudo acadêmico, de composição severa e tonalidades seguras.

Passou-se o tempo, a caricatura venceu-me, empolgou-me, e quando, nas horas de lazer, bem raras, atiro-me à fantasia das aquarelas, evoco saudosamente o bom Fabrício Gomes, a cabeça leonina, fronte larga e serena, onde sob um moreno jambo parecia brilhar a concepção esmagada pelas vicissitudes do sofrer terreno. E até hoje ninguém mais soube dele, de seu destino, de seu pouso, mas deixou no espírito dos que sentem a saudade perene de seu temperamento exótico, alheia a vida burguesa, refratário às convenções triviais, alimentando intimamente contra a indiferença mudana, a chama do ódio vivificante, como dizia Pompeia – “não do ódio mau, que ofende e vitima, mas do ódio que reage, do ódio que reivindica, do ódio que reclama, do ódio santo, que é uma forma militante de amor”.

A redação do Diário do Natal comentou sobre o escrito acima de Raul Pederneiras: o Fabrício Gomes, a que se refere o ilustre escritor deve ser o nosso malogrado conterrâneo Joaquim Fabrício Gomes, falecido há anos no Pará na mais extrema pobreza, deixando aqui mulher, que ainda existe, e um ou dois filhinhos. Joaquim Fabrício estudou na Escola de Belas Artes do Rio a custo da antiga Província, que depois retirou-lhe a subvenção. Depois do diploma pela Escola aqui voltou, já na Republica, e casou-se. Não tinha conseguido colocar-se e nada fazendo aqui foi para Belém, onde faleceu na maior indigência.

Na verdade, Joaquim Fabrício trabalhou vários anos, antes de vir para Natal. Raul Pederneiras voltou a escrever sobre o Professor, no Jornal do Brasil, do ano de 1913, com o título de “Conselhos inúteis”.

Era o título do canhenho deixado por Fabrício Gomes, o misterioso artista caboclo, que foi o nosso primeiro mestre de desenho. Entre os raros manuscritos inéditos que deixou consta-nos que havia um bem trabalhado opúsculo sobre perspectiva linear aérea e alguns versos pobres.

Somente conseguimos alcançar um punhado de laudas de papel com o título que encima estas linhas.

O artista ingratamente esquecido, desfavorecido de fortuna, atirado ao limbo do menoscabo, habitava uma água-furtada do largo de São Domingos, onde três vezes por semana íamos buscá-lo para o estudo das paisagens e aquarelas ao ar livre.

Certa vez descobrimos sobre o travesseiro as laudas de papel. Mestre Fabrício quis escondê-los; “não prestavam”.

Eram apontamentos, conselhos, notas para os que desejam viver “tranquilos e seguros”. Instado, rogado, afinal, cedeu, para que passássemos a limpo as suas notas.

É delas o punhado de conselhos que aqui transcrevemos, e onde se poderá observar algo do formoso talento desse artista quase ignorado hoje; talento aliado a um pessimismo e a uma ironia fora do vulgar. São dele as observações que publicamos, para que um dia seja feito a justiça sobre o seu talento, que alguns zoilos tentaram depreciar.

“Serão inúteis estes conselhos. Serão. O certo é que os fiz para mim, e se algum dia virem a luz da grande publicidade, terão o belo consolo de não serem atendidos nem obedecidos.

Fica-me o orgulho da exceção. Ainda bem. Poucos poderão dizer outro tanto, presos aos laços da convenção e do preconceito, sem mais formalidades.

Observei demasiado a vida dos homens e das coisas e as notas esparsas dirão talvez que alguém houve com coragem inaudita de opinião própria.

Pouco importa a opinião dos outros, o exame, a análise dos terceiros – sou de minha escola e de meu pensar, e sigo adiante.
- Quando tiveres algum dinheiro na algibeira, a ninguém convides para qualquer gasto. 

Deixa correr livremente o barco da situação. O dinheiro à ufa dar-te-á amigos e admiradores de ocasião. Passado o período das espigas gordas, dos amigos e admiradores, não encontrarás um só para semente.

- Subiram o preço da xícara de café. Dificuldades do tempo assim o exigem. Para resolver o problema, comprima-se o contribuinte.

Um quilo da rubiácea dá umas setenta xícaras e resolve o problema econômico e onzeneiro do fornecedor – É assim a economia política: traz sempre a felicidade... para os outros.

- Em matéria de arte, despreza sempre as questões de escola. Dize que tudo está muito bem e muito bom. No dia em que notares o mais leve senão em um trabalho artístico terás a certeza de um inimigo pelas costas.

- Todavia se não tens veia para a crítica, se de nada entendes não percas a esperança. Faze-te de critico de arte teatral, que é a maior legião dos pobres de espírito e o consolo supremo dos que nada entendem.

- Quando alguém perorar com gravidade de atirar para contrapeso citações perdidas de autores massudos, acredita, dá toda a fé ao que ouvires e ficarás sendo tão erudito como o alguém que te azucrinou o ouvidos e a paciência.

- Foge de ouvir a leitura de sonetos no meio da rua e dos cães que dormem nas soleiras do casario dos arrabaldes, são dois males que quase sempre se repetem quando nos atacam.

- Nunca invejes o ricaço ou o graúdo do “parvenu”, se tiveres talento. Orgulha-te com a independência do espírito, pois é fácil alcançares o que possui o ricaço e é impossível ao ricaço alcançar o que possues.

- Se tens talento, lapida-o e guarda-o com santidade. Ele chega a inquietar a própria tirania.  Se esta é fraca, há de temê-lo como uma força; se ela é forte há de aborrecê-lo e odiá-lo como uma liberdade.

- A mulher que de tudo se ri, ou não tem o juízo seguro ou então é possuidora de magníficos dentes. É a menos perigosa das mulheres, a que se ri, porque o riso é desarmamento geral dos maus instintos, das más paixões.

- Não sei quem disse que se considerava estulto quando olhava para si próprio e se considerava de muito valor quando se comparava aos outros. Por isso, é que eu me sinto modesto e parvo quando me concentro, mas sinto em mim um vigoroso atleta de sentimento e de ideias quando vejo em torno os conselheiros de Estado e os críticos de arte.

- Em arte plástica, principalmente em pintura, a dificuldade não está na execução e no sentir do artista, está na improvisação que a obra deve causar ao público. Quem assim não pensar que se meta entre quatro paredes e não apareça ao mundo.

- Devo o êxito de minhas ações aos conselhos que não recebi de pessoa alguma. Fico-me muito obrigado por isso e dos meus conselhos neles espero que ninguém se aproveite.

- Se a ociosidade é a mãe de todos os vícios, a burocracia deve se avó. Não há exemplo, em terra latina, de uma iniciativa e intensidade de vida no regimento colossal dos parasitas sociais.

Dou-me muito bem com todos os que não se dão comigo. Ao menos esses, foram sempre a favor da justiça a meu respeito. Os outros, os que me conhecem, tem sempre um “mas” a acrescentar às bondosas referências.

- Quando alguém, para definir qualquer coisa, começa pelas palavras: “por exemplo” – cuidado com ele, não tem certeza do que diz ou não está senhor da praça na matéria.

- Procure ser útil a ti e aos teus se os tiveres. Aos demais procura utilidade que se transborde em seu benefício. Dirás que é um conselho egoísta. Mas que é o altruísmo senão o próprio egoísmo transbordante?

- Na monografia das artes liberais há dois capítulos tremendos. O primeiro é da iniciativa, o segundo o da capitulação.
- Fazer o bem pelo bem que nos sabe é preferível ao desejo de fazer o bem pela recompensa que possa advir. O primeiro ato é um egoísmo são, forte, duradouro; o segundo ato é um epilogo ...de caráter.

Muitos, muitos outros conselhos deixou Fabrício dos papéis perdidos, e se não fora o seu gênio dispersivo e irrequieto, talvez admirássemos uma obra mais sólida, vigorosa, ponderada, que pudesse mostrar com toda verdade o quanto de valor e de merecimento possuía o artista quase ignorado, infeliz e bem depressa esquecido. 

Joaquim Fabrício Gomes de Sousa e sua esposa D. Idalina Leopoldina de Sousa gerou, o também professor do Atheneu, Israel Nazareno de Sousa, nascido aos 3 de julho de 1897, na Rua Santo Antonio, nº 796.

P. S. Este artigo foi publicado no livro: Construtores da Ágora Soberana Potiguar- Múltiplas Memórias- Professores do Atheneu Norte-Riograndense (1892/anos 1960), cujos organizadores foram Diógenes da Cunha Lima e Eva Cristini Arruda Câmara Barros.