sexta-feira, 4 de outubro de 2024

 

Registros forenses da Comarca de Santana do Matos (Rio Grande do Norte, 1855-1920): história e genealogia

 

Arlan Eloi Leite da Silva[1]

Giulliano Alves de Sousa[2]

 

 

1.    Introdução

O objetivo deste estudo é apresentar os registros forenses da Comarca de Santana do Matos, Rio Grande do Norte, como fontes documentais que possibilitam estudos histórico-genealógicos. Para tanto, mobilizamos os registros tipificados como inventários post-mortem; testamentos; carta de sesmaria; cobranças; vendas e demandas judiciais sobre terras, inclusive com a presença de Vicente Simões Pereira de Lemos (um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e seu presidente efetivo); ação judicial pela posse de escravizados; bem como um processo de crime de morte, no período entre 1855 a 1920, os quais são articulados à História de Santana do Matos. Este artigo está dividido em cinco partes: Introdução; Um registro de sesmaria e outras demandas judiciais sobre terras; As últimas vontades e as partilhas de bens de famílias santanenses; “Sangue bastante pelo chão” em Tanques Pretos; e as Considerações finais.

De acordo com os dados do IBGE (2022), Santana do Matos possui um território de 1.422,268 km2 e uma população residente de 12.456 pessoas. O povoado de Santana do Matos deu início com a Fazenda Bom Bocadinho, de propriedade do português Manoel José de Matos, ainda no século XVIII. Em agradecimento à Nossa Senhora de Santana, o referido português construiu uma capela que recebeu o nome de Capela de Santana do Matos, sendo uma referência à santa católica e ao dono das terras. Em 1836, “Santana do Matos desmembrou-se de Assú, tornando-se município”, porém em “6 de agosto de 1855, pela Lei Provincial de nº 314, o município voltou à condição de povoado.” Entretanto, com apenas um mês, “foi definitivamente restabelecida a condição de município no dia 5 de setembro de 1855”. (Morais, 2007, p. 186).

 O município santanense está localizado na região central do Rio Grande do Norte, distando 191 quilômetros da capital. Limita-se com Angicos, Itajá, Fernando Pedrosa, São Vicente, Florânia, Tenente Laurentino Cruz, Bodó, Lagoa Nova, São Rafael, Jucurutu e Cerro Corá. No século XIX e começo do século XX, por exemplo, São Rafael e Bodó integravam o município santanense, inclusive também parte do território do atual município de Jucurutu. (Morais, 2007).

A Paróquia de Santana do Matos, denominação dada pelo Recenseamento do Brasil em 1872, apresentava um total de 9.819 homens e mulheres livres. Dos escravizados, 390 homens e mulheres eram cativos. Sendo a população total de 10.209 pessoas, incluindo 4 italianos e 4 portugueses como estrangeiros residentes. No que diz respeito à qualificação étnica desses indivíduos, 4.208 eram brancos, 5.211 pardos, 177 pretos e 220 caboclos. Desse modo, a maioria da população era classificada como não-branca. (Brasil, 1872, p. 37).

Sobre as profissões em Santana do Matos, apresentavam-se 3 religiosos seculares; 1 advogado; 1 notário e escrivão; 1 oficial de justiça; 5 professores e homens de letras; 1 empregado público; 9 artistas (provavelmente artesãos); 2 pescadores; 74 capitalistas e proprietários; 4 manufatureiros e fabricantes; 43 comerciantes, guarda-livros e caixeiros; 302 costureiras; 1.298 lavradores; 271 criadores; 407 criados e jornaleiros; 358 serviços domésticos, dentre outras atividades, e 6.976 pessoas sem profissão. (Brasil, 1872, p. 37-38). Já no Recenseamento de 1920, o município de Santana do Matos tinha uma população de 21.393 indivíduos, sendo 4 estrangeiros desse total. (Brasil, 1928, p. 506). Essa quantidade populacional expressiva pode ser explicada com a extensão territorial de Santana do Matos antes do desmembramento de outros municípios emancipados posteriormente, conforme já mencionado.

Os escravizados pouco aparecem nos inventários post-mortem, porém, pelo Recenseamento de 1872, havia uma população significativa desses indivíduos sob o jugo da escravidão, sendo 187 deles qualificados como pardos. (Brasil, 1872, p. 37). Também nos chama atenção o fato de haver uma grande parcela da população santanense sem ocupação definida. A julgar pelos registros forenses de Santana do Matos, na segunda metade do século XIX para início do século XX, a população tinha uma parcela expressiva de pequenos proprietários rurais, com poucas exceções de famílias abastadas que eram possuidoras de grande cabedal. Além disso, é provável que muitas famílias santanenses deixaram de fazer a partilha de bens em ação judicial.

Oliveira Júnior (2021, p. 49) identificou, em Santana do Matos, as “terras de negros” em comunidades que estão localizadas no Distrito de Santa Tereza, na Serra da Pimenteira e no Distrito Barão de Serra Branca. No de Santa Tereza, por exemplo, existem três comunidades negras rurais: Conceição dos Negros, Riacho da Roça e Assentamento São Manoel. Tratam-se de comunidades quilombolas oriundas, provavelmente, daquela população escravizada que aparece no censo populacional de 1872. Há, portanto, a necessidade de maiores estudos sobre a escravidão e as famílias não-brancas e quilombolas do município santanense.

Ademais, a população de origem indígena, tratada como cabocla nesse primeiro recenseamento brasileiro, é remanescente dos povos originários que habitaram o território santanense antes da chegada dos europeus e africanos. De acordo com Bertrand (2010, p. 77), existem cerca de 20 sítios arqueológicos em Santana do Matos, sendo “um sítio com vestígios de enterramentos, dois sítios com vestígios líticos e um total de dezessete sítios [...] com vestígios de arte rupestre”. Os sítios arqueológicos foram identificados, dentre outros, com o nome de Cruzeiro, Serrote dos Caboclos, Pedra Redonda, Basso, São Vicente, Saquinho, Pedra do Braz, Montevidéu, Pichoré, Pedra do Suetônio, Serrote do Gavião, Cachoeira, Serra do Urubu, Pinturas e Bom Jesus. (Bertrand, 2010).

A orientação teórica desta pesquisa está alinhada a uma História Social dos registros forenses da Comarca de Santana do Matos, Rio Grande do Norte, a partir da ideia de que a “pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção socio-econômico, político e cultural”. (Certeau, 2006, p. 67). Além disso, a História Social pode voltar a sua investigação para minorias, grupos profissionais e células familiares, isto é, “para um subconjunto específico da sociedade”. (Barros, 2004, 113). Nesse sentido, a pesquisa histórica direcionada para a Genealogia (história da família) pode ser abordada a partir das “relações sociais, as classes estamentos, as ideologias.” (Barros, 2005, p. 96). Além disso, o trabalho com registros documentais, que elegemos como fontes, pode ser entendido como um espaço da recordação por meio das memórias dos mortos com os seus nomes e histórias de vida (Assmann, 2011).

O presente estudo apresenta uma metodologia com abordagem descritiva, analítica e qualitativa sobre os registros forenses na perspectiva nominativa. Assim, entendemos o método genealógico a partir do elemento de identificação dos sujeitos “que distingue um indivíduo de um outro em todas as sociedades conhecidas: o nome.” (Ginzburg e Poni, 1989a, p. 173-4). Já o método do paradigma indiciário possibilita a busca pelos indícios deixados por homens e mulheres em um dado recorte espaço-temporal por meio de diversos registros históricos. (Ginzburg, 1989b).

Ainda na abordagem metodológica, daremos ênfase “sobre o potencial das análises qualitativas dos registros [...], com base na ligação nominativa feita a partir do cruzamento com outras fontes”. (Guedes e Fragoso, 2016, p. 40). Por isso, é importante o confronto de diferentes tipologias de fontes tratando do mesmo objeto de pesquisa, dialogando com outras pesquisas bibliográficas, a fim de compreendermos o percurso de determinados indivíduos ou famílias, ou seja, os itinerários nominativos.

Quanto ao recorte temporal, dá-se início em 1855 com o inventário post-mortem mais antigo encontrado e vai até 1920, quando já se passaram mais de 100 anos do falecimento de testadores e inventariados. De acordo com Pinsky e Luca (2011, p. 17), “o método histórico aproxima-se muito do método de um detetive ou de um médico que, à força de esforços titânicos, deve extrair coisas que só aparecem de forma indireta.” Outrossim, o método adotado pelo historiador depende do problema que o leva à investigação (Pinsky e Luca, 2011). Desse modo, percebemos que esses registros forenses contribuem para a História de Santana do Matos e também do Rio Grande do Norte.

Os registros judiciais do Fórum da Comarca de Santana do Matos estão armazenados em caixas, em uma sala específica do prédio, com identificações por datas e tipos de registros, porém é possível encontrar outros tipos de documentos na mesma caixa que não foram inicialmente sinalizados. Não há uma sistematização precisa no armazenamento desse material forense. Contudo, é possível ter acesso com autorização da direção do Fórum, respeitando o manuseio correto dessa documentação relevante que precisa ser urgentemente melhor preservada com digitalização e catalogação.

Nessa direção, foram fotografados inventários post-mortem, testamentos, documentos fundiários (disputas pela posse de terras, cobranças, vendas de propriedades e o traslado de uma carta de sesmaria), ação judicial pela posse de escravizados, além de um processo de crime de morte. Depois da identificação de cada um desses registros, passamos a transcrevê-los para a construção desta pesquisa. Sobre as diversas tipologias documentais, a maioria é inventário post-mortem. Priorizamos, contudo, a identificação dos núcleos familiares, seus logradouros e suas ligações de parentescos ou afinidades com outras famílias. No entanto, o arrolamento de bens, as partilhas e o cabedal inscritos nos inventários post-mortem, testamentos etc. são importantes para entendermos a posição socioeconômica e até mesmo política de determinadas famílias naquela sociedade santanense.

Nos arquivos do Poder Judiciário, podemos encontrar testamentos, inventários post-mortem, processos cíveis e processos crimes. (Pinsky, 2008). Quanto ao testamento, é o instrumento que registra as últimas vontades de um sujeito, permite a revelação de suas crenças e visões de mundo, a previsão de “auxílios a filhos, parentes ou conhecidos, inclusive escravos, sob as mais variadas alegações.” Mas o testador também poderia reservar “valores consideráveis da terça para favorecer um filho ou uma filha, eliminando o caráter igualitário” da inevitável partilha. (Pinsky, 2008, p. 36).

No tocante aos inventários post-mortem, são registros que possibilitam “a compreensão de como o patrimônio familiar era transmitido de uma geração para outra, por meio de dotes, terça e legítima transmitidos aos herdeiros.” Eles podem auxiliar no estudo da evolução da composição do patrimônio de determinadas famílias ao longo dos séculos. Também “podem ser usados para se estudar a escravidão sob os mais variados aspectos.” (Pinsky, 2008, p. 37).

Já os processos crimes e cíveis “são fontes igualmente abundantes e dão voz a todos os segmentos sociais, do escravo ao senhor.” Permitem o estudo sobre as atividades mercantis, cobranças judiciais de dívidas, além da “convocação de testemunhas, sobretudo nos crimes de morte, de agressões físicas e de devassas.” E podem revelar as redes de sociabilidade, solidariedade e até mesmo as rixas no cotidiano dessas populações do passado. (Pinsky, 2008, p. 37). Quanto à documentação sobre terras, ela pode trazer “questões agrárias ou habitacionais”, disputas judiciais e a posse de terras sem títulos oficiais, porém essas propriedades rurais, em muitos casos, poderiam ser negociadas livremente em tratos informais. (Pinsky, 2008, p. 34). Sendo assim, todas essas tipologias de fontes oriundas do Poder Judiciário podem contribuir com diversas pesquisas historiográficas e genealógicas.

 

2. Um registro de sesmaria e outras demandas judiciais sobre terras

Em 1883, na cidade do Assú, com traslado para Santana do Matos, foi lavrada uma cópia da Carta de Data e Sesmaria, de 2 de abril de 1742, pertencente ao sesmeiro João de Barros de Oliveira, morador na Ribeira do Assú. O Poder Judiciário de Santana do Matos, no recorte temporal desta pesquisa, esteve integrado à Comarca do Assú. Mas também encontramos referência do pertencimento da Vila santanense à Comarca de Macau entre o final dos anos de 1870 e começo dos de 1880. (Traslado [...], 1883).

A Carta de Sesmaria de João de Barros, firmada em Natal, foi concedida por Francisco Xavier de Miranda Henriques, capitão-mor e governador da Capitania do Rio Grande do Norte, em nome do rei de Portugal, para os herdeiros descendentes e ascendentes desse peticionário. A terra ficava entre as datas do Sítio Bom Jesus, pertencente ao referido sesmeiro, o Sítio Cachoeira, de propriedade de Francisco Xavier de Souza, e a data de Curicaca, pertencente aos herdeiros de João de Oliveira Velho. Tinha o comprimento de três léguas a partir do serrote redondo dos massapês, onde findava a meia légua do princípio da data de Francisco Xavier de Souza, correndo para a pedra rachada com largura estabelecida entre o Sítio de Diogo Malheiros, Curicaca e Bom Jesus. O registro original foi apresentado por João Severiano Correia Barbosa e trasladado em público por Idalino Abílio Pinheiro Monteiro, em 3 de março de 1883. (Traslado [...], 1883).

A sesmaria de 1742 alcançava o território de Santana do Matos e certamente a preservação do original desse registro pelos descendentes de João de Barros de Oliveira era uma forma de legitimar a posse das terras por várias gerações da família. Os parentes de João de Barros aparecem na região de São Rafael e, pelos registros forenses de Santana do Matos, encontramos os juízes Capitão Antônio Cabral de Oliveira Barros e Manoel Martins de Oliveira Barros, bem como o Tenente Francisco Martins de Oliveira Barros, entre outros.

Em 1884, o Tenente Felipe Nery de Carvalho e Silva e a sua esposa Belizária Wanderley moveram uma ação sumária de manutenção da posse de uma data e sesmaria que o casal era proprietário. O réu foi Amaro Cassimiro Bezerra Cavalcante por ter mandado Matias Cassimiro de Souza derrubar árvores e brocar roçados na referida terra, que media três léguas de comprimento confinantes com as terras do Curral Novo, Sítio Rufão, Bom Sucesso e com uma légua de comprimento para a Serra Branca e duas para as partes da Serra Negra. Felipe e Belizária tinham adquirido a posse da terra dos herdeiros de Antônio de Oliveira e Freitas, o qual havia recebido a sesmaria em 1765. (Ação [...], 1884). Nesse caso, o registro da sesmaria servia para legitimar a titularidade da posse de uma terra adquirida dos herdeiros do sesmeiro.

Para essa ação judicial, Felipe Nery e a sua esposa Belizária Wanderley, Barão e Baronesa de Serra Branca cujo título foi dado por decreto imperial em 1888, fizeram, em 1883, uma procuração pela qual constituíram como seus procuradores o Doutor Vicente Simões Pereira de Lemos (então Promotor Público e Advogado do citado casal) e João Domingos da Cunha Lages (proprietário rural e falecido em 1886 com abertura de inventário post-mortem). O objetivo era tentar uma conciliação com Matias Cassimiro de Souza e a sua mulher Josina Carolina Pinheiro da Silva. O juiz João Francisco Uchoa Costa mandou um oficial de justiça notificar o réu, onde ele morava no Sítio Curral Novo, mas o procurado havia viajado para Natal. Segundo o escrivão João Rodrigues da Cunha Baracho, Matias teria viajado para evitar o recebimento da citação judicial. (Procuração [...], 1883).

 

Trecho do requerimento do Tenente Felipe Nery de Carvalho e Silva e de sua esposa Belizária Wanderley de Carvalho e Silva com a assinatura do Advogado Vicente Simões Pereira de Lemos.

Vila de Santana do Matos, 23 de novembro de 1883.

 

Vicente Simões Pereira de Lemos (1850-1918) foi “historiador, advogado, juiz, desembargador, escritor” e fundador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) e seu presidente efetivo de 1910 a 1916. Era natural de Recife, Pernambuco, onde tornou-se Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito, em 1873. No Rio Grande do Norte, foi Promotor Público em Macau, Assú e Mossoró, Juiz de Direito em Natal e Canguaretama e Desembargador do Tribuna de Justiça do Estado, em 1898. Com o pseudônimo de Simão Nunes, Vicente colaborou com jornais e revistas de sua época. (400 nomes..., 2000, p. 773). Esse heterônimo fazia referência a uma provável ascendência em cristãos-novos? Ele também fez apontamentos importantes sobre a questão de limites entre o Ceará e o Rio Grande do Norte e publicou o livro Capitães-Mores do Rio Grande do Norte (1912). (400 nomes..., 2000).

Na ação executiva por cobranças de rendas de terras, referentes ao Sítio Ubarana, em Santana do Matos, Francisco Tertulino da Cunha, José Francisco da Fonseca, João Francisco da Fonseca e Joana Maria da Cunha, viúva de Francisco da Fonseca, constituíram como seu procurador o Doutor Álvaro Fragoso de Albuquerque, na cidade do Assú, em 6 de abril 1886. (Procuração [...], 1886). No mesmo mês e ano, Minervino Lins Wanderley, proprietário do referido sítio, fez um requerimento ao juiz de paz pedindo a penhora executiva de cem mil réis para cada um dos quatro devedores e residentes nesse sítio: Francisco Tertulino, José Francisco, João Francisco e Joana Maria. Dias depois, na audiência de conciliação, os réus não concordaram em pagar as dívidas ao proprietário do Sítio Ubarana. (Requerimento [...], 1886).

Noutras demandas de terras, encontramos Inácia Puritana de Sá Albuquerque, moradora do Engenho Pindobinha, termo de Ipojuca, vendendo uma parte de terras em Santana do Matos, em 1887, que ela havia recebido por herança dos seus pais Afonso de Albuquerque Maranhão e Maria Anna Francisca de Paula Cavalcante de Albuquerque Maranhão. A terra ficava na fazenda Forquilha e foi vendida por cem mil réis ao comprador João Antônio Severiano de Palhares, que pagou as despesas da transmissão e o traslado da escritura particular de venda para o Fórum da Vila de Santana do Matos. (Escritura [...], 1887). João de Palhares era Capitão da 3ª Companhia do Batalhão nº 28 da Guarda Nacional, da Comarca de Macau, e casado com Maria Freire das Neves. O casal também constituiu como seus procuradores, na Vila de Santana do Matos em 1892, o Major João Francisco Barbalho Bezerra, Emídio Bezerra da Costa Avelino e Doutor Manoel José Cristo. (Procuração [...], 1892).

 

3.    As últimas vontades e as partilhas de bens de famílias santanenses

Francisco da Silva de Carvalho faleceu em 22 de fevereiro de 1875. Em 10 de abril daquele mesmo ano, o seu testamenteiro e inventariante José Lucas de Sousa Barros apresentou, no cartório de Santana do Matos, o traslado do testamento e a petição para a abertura do inventário dos bens do falecido sogro, com a notificação dos herdeiros. No testamento, datado de 5 de agosto de 1873, no Sítio Bom Sucesso, Francisco de Carvalho expressou as suas últimas vontades, identificando as suas raízes, família e herdeiros:

 

Em nome de Deus Amém, eu Francisco da Silva de Carvalho, estando de saúde e em meu perfeito juízo, mas temendo a morte, quero fazer o meu testamento e disposição de última vontade e a faço da maneira seguinte: declaro em primeiro lugar que sou católico romano, em cuja fé protesto viver e morrer, e peço a Santíssima Virgem da Conceição seja a minha protetora em toda a minha vida e na hora de minha morte. Declaro que sou natural desta freguesia de Santana do Matos, outrora do Assú, e filho legítimo de Antônio da Silva de Carvalho e Joana Perpétua de Mello, já falecidos. Declaro que fui casado em primeira núpcia com Maria Joana, de quem tive uma filha de nome Sabina e que a pouco faleceu deixando herdeiros. Declaro que casei em segunda núpcia com Ignácia Martins da Fonseca, já falecida, de quem também só tive uma filha de nome Raimunda, casada com o senhor José Lucas de Sousa Barros, e por isto é esta e os meus netos como representantes de sua mãe Sabina, os meus legítimos herdeiros; visto como não tive outros filhos. Declaro que os bens que possuo serão aqueles que se acharem ao tempo do meu falecimento. (Testamento-Inventário [...], 1875, p. 3-4).

 

O testador nomeou, além do genro José Lucas, mais dois testamenteiros e administradores de seus bens: o sobrinho Alexandre José de Souza e o Capitão Laurentino Minervino Fernandes de Sousa. Instituiu como herdeira de sua terça a neta Belisa, filha da herdeira principal Raimunda casada com José Lucas, em virtude do afeto devotado por essa neta ao avô. Para isso, o testador declarou que o quinhão de terça fosse uma mesa grande. (Testamento-Inventário [...], 1875). As mesas aparecem, nas partilhas, entre os bens móveis importantes do aconchego doméstico. Francisco era tio paterno do Barão de Serra Branca.

No inventário, em 1875, Alexandre José de Souza, sobrinho do falecido, foi nomeado curador dos herdeiros órfãos. Além das duas filhas Raimunda Fonseca e Sabina da Silva como herdeiras principais, aparecem os herdeiros secundários do inventariado Francisco de Carvalho. Os netos foram Lucina Adelaide Martins Fernandes casada com José Martins Ferreira da Costa; Francisca Laurentina Fernandes de Sousa, viúva; Absalão Fernandes da Silva Bacilon, solteiro; Rosalina Perolina da Silva, viúva; Fermina Maria Fernandes da Silva, solteira, e Jesuína Marfisa da Silva Fernandes, falecida, que por ela representam os seus filhos órfãos. Quanto aos bisnetos, apareceram Maria de 9 anos de idade; Manoel de 8 anos de idade e João de 7 anos de idade. (Testamento-Inventário [...], 1875). E Absalão Fernandes foi o avô materno de Aluízio Alves, ex-governador do Rio Grande do Norte. (Lyra, 2015).

Em 10 de janeiro de 1920, o escrivão e testamenteiro Alexandre Correia Barbosa autuou o testamento dos falecidos Manoel Américo Rodrigues Baracho e Antônia Maria Rodrigues Baracho, que eram irmãos. Os testadores Manoel e Antônia declararam ser cristãos católicos, filhos do Alferes Antônio Rodrigues Baracho e Quitéria Umbelina da Silva, e terem nascido, respectivamente, em 1855 e 1843. Afirmaram ser brasileiros, solteiros, naturais e moradores na fazenda Boa Vista, em Santana do Matos. Por não terem descendentes diretos, os testadores constituíram como legítimos herdeiros os seus irmãos Germano Manoel Américo Rodrigues Baracho e Germana Antônia Maria Rodrigues Baracho. (Registro de testamento [...], 1920). Em 1861, na mesma propriedade da Boa Vista, o Alferes Antônio Rodrigues foi o inventariante meeiro da falecida esposa Quitéria Umbelina. (Inventário [...], 1861).

Os autos de inventário, sobretudo no século XIX, exigiam a presença de um juiz, um escrivão, o inventariante (poderia ser o cônjuge meeiro), o título de herdeiros, o curador ou tutor de órfãos, a descrição do espólio, os avaliadores e partidores dos bens. Em 27 de setembro de 1855, na cidade do Assú, foi aberto o inventário post-mortem de Leonidia Francelina do Amor Divino pelo juiz Tenente Coronel José Carlos de Carvalho. O viúvo meeiro Manoel Lopes Idalino prestou juramento como inventariante. Os filhos herdeiros foram Maria (de 4 anos de idade), Francisca (de 3 anos de idade) e Francisco (de 2 anos de idade). No arrolamento dos bens, entre vacas, éguas, garrotes, cavalos e uma parte de terra no lugar Cacimba de Baixo, aparece a escravizada Raimunda, que foi qualificada como crioula de quinze anos, sendo avaliada pela quantia de duzentos e cinquenta mil réis. (Inventário [...], 1855).

Leonidia Francelina era filha de Vicente Ferreira de Lima e Joana Quitéria Veloso da Silveira, a qual faleceu em 5 de março de 1872, no Sítio Tostado, em Santana do Matos. No inventário de Joana, naquele mesmo ano, filhos e netos aparecem como herdeiros: Manoel Ferreira Lima casado com Miquelina e moradores no lugar Pinturas; Belarmino José Geminiano casado com Maria Joana e moradores na Serra do Meio; Miguel Francisco de Paula casado com Panfila; José Ferreira Lima, solteiro e morador no Sítio Tostado; Maria Ferreira Hostaliana da Silva, já falecida e representada por seus filhos Antônio Aquelino e Adelfácio Ribeiro; Leonidia Francelina do Amor Divino, já falecida e representada por seus filhos Maria Leonidia, casada com José Canuto, Francisca Leonidia, casada com Estevão, e Francisco Lopes Idalino, solteiro, e moradores no lugar Pinturas. (Inventário [...], 1872a). No inventário de Leonídia Francelina, em 1855, não há referência ao domicílio dela com o esposo e os filhos, mas é possível que já morassem em Pinturas (lugar que evoca memórias dos povos originários) ou no Tostado.

Santana do Matos, cujo relevo “aplainado, pontilhado de formas residuais da textura granítica”, de muitos tanques naturais, além da vegetação seca de poucas árvores, “como umbuzeiro, catingueira e mandacaru” (Bertrand, 2010, p. 69), viu a multiplicidade dos sítios e fazendas de criação ao longo do tempo. Em 1867, no Sítio São José, foram arroladas, como espólio, quatro vacas paridas, três novilhotas, uma égua velha, três potros, um cavalo velho, e uma dívida, dentre outras, no valor de vinte mil réis ao credor Vitorino José Barbosa, que era cunhado do inventariado Luiz da Rocha Pita, falecido em 1866. A viúva meeira Leonarda Maria da Apresentação fez o juramento como inventariante. Foram herdeiros Luiz Pedro da Fonseca Pita, Luiz Valcácio da Rocha Pita, Torquato da Rocha Pita, Manoel Serapião da Rocha Pita, Francisco da Circuncisão Pita Deus Dará, Aldonsa da Rocha Pita, Isabel Maria da Rocha Pita, Helfina Fausta da Rocha Pita, João Luiz da Rocha Pita, falecido e representado pela filha Maria, e Maria Generina Francelina da Silveira, falecida e representada por seus filhos Joventino da Silveira Borges, João Celso da Silveira Borges, Glicéria, Maria, Jovino, Ana, Honorina e Tereza. (Inventário [...], 1867).

Em 1874, a viúva Leonarda Maria da Apresentação com o seu irmão Vitorino José Barbosa, por seus procuradores Luiz Pedro da Fonseca Pita e Manoel Barbosa Pereira (provavelmente era irmão de Leonarda e Vitorino), moveram uma ação civil para tomarem posse, como legítimos herdeiros, dos escravizados Ângela, Francisco e Aproniano, que faziam parte do espólio do falecido pai José Felix Barbosa Pimentel. Os escravizados estavam sob o poder de Vicente Ferreira de Lima, o qual havia contestado a partilha dos bens desse inventário e pretendia vender os três cativos. Na ação judicial, Leonarda, Vitorino e Manoel pediram ao juiz que determinasse o mandado de sequestro sobre os escravizados e que estes fossem enviados a depositário idôneo para a garantia de direitos. (Juízo [...], 1874). O registro, porém, não sinalizou a qualificação, a idade e o suposto parentesco dos três indivíduos cativos.

Irineu Brasiliano de Carvalho e Silva, médico, constituiu o seu irmão Felipe Nery de Carvalho e Silva e os primos Manoel da Silveira Borges, Absalão Fernandes da Silva e Alexandre José de Souza como seus procuradores no inventário da falecida mãe Maria da Silva Veloso, em 1870. Irineu era casado com Maria Cristina Antunes de Carvalho e Silva e moravam em Aracati, na Província do Ceará. O viúvo meeiro Antônio de Carvalho e Silva apresentou os três filhos herdeiros: Felipe Nery casado com Belizária Wanderley e moradores na Serra Branca, Irineu Brasiliano casado com Maria Cristina, e Ana Joaquina da Silveira, já falecida e representada por seus filhos Antônio de Carvalho e Souza e Manoel de Carvalho e Souza, os quais estavam estudando no Recife. E Alexandre José de Souza e João Antônio de Souza foram nomeados, respectivamente, curador e procurador desses netos órfãos da inventariada. Na partilha dos bens, como família abastada, havia talhares de prata, objetos de ferro, tachos de cobre, mesa grande de cumarú com gavetas, uma cômoda de angico com gavetas, um jogo de malas de pregaria com fechaduras, um baú velho etc., além dos bens semoventes vacum e cavalar. (Inventário [...], 1870).

Em 1872, Manoel Duarte Ferreira (filho), sobrinho da falecida Isabel Correia da Costa, que não deixou filhos, entrou com uma ação judicial para que o viúvo meeiro, Capitão João Martins de Macedo, procedesse com o inventário post-mortem da falecida tia. O casal morava no Sítio Conceição. Os herdeiros foram todos os irmãos de Isabel: Maria da Silva Freire, viúva, e os demais irmãos já falecidos Antônio Lopes de Macedo, Faustino Correia Barbosa, Bernarda da Costa Oliveira, José Nunes de Oliveira, Alexandre Ferreira da Costa, Manoel Duarte Ferreira, Mathildes Correia da Costa, Ana Correia da Costa e Mariana Correia da Costa, os quais foram representados por seus filhos. (Inventário [...], 1872b). Esse inventário revela uma complexa rede de parentesco espalhada por lugares, entre outros, como Angicos, Ceará-Mirim, no Rio Grande do Norte, e Mamanguape, na Paraíba.

Mas o testamento de Isabel Correia da Costa foi encontrado no Fórum da Comarca do Assú. Em 1856, no Sítio Conceição, em Santana do Matos, a testadora Isabel nomeou como seus testamenteiros o próprio marido Capitão João Martins de Macedo, o Major Mathias de Macedo Cabral e João de Barros de Oliveira (provável descendente homônimo do sesmeiro em 1742). Ela declarou que era natural da Freguesia do Assú, filha legítima de José Nunes de Oliveira e Isabel Correia de Brito, e casada, por carta de metade, com o Capitão João Martins de Macedo. Sem filhos e sem herdeiros legítimos. Possuía sete escravos: Miguel, Faustino, Luiz, Úrsula, Constância, Luciana e Justino. Era proprietária de uma parte de terras no Sítio Conceição com casa de vivenda e outra casa de pedra e cal na Vila de Santana do Matos. Não tinha dívidas ativas nem passivas. Constituía, então, como único herdeiro de sua fazenda o esposo João Martins. A testadora ainda declarou que seu corpo fosse envolto em hábito branco e sepultado na Igreja Matriz de Santana do Matos, com missa de corpo presente e esmola de costume, além de meia capela de missa em sufrágio de sua alma. (Testamento [...], 1856). Provavelmente, a família da testadora e inventariada Isabel aproveitou a condição do casamento dela (carta de metade) para requerer judicialmente 50% dos bens da falecida, em 1872, o que foi julgado procedente.

Quanto à senhora Maria Beatriz Paz Barreto[3], inventariada em 1876, era possuidora de um cabedal importante no Sítio Picada. No espólio, declarado por Manoel de Mello Montenegro Pessoa e outros herdeiros, havia peças de prata, cobre, mesa de cumarú com gavetas, armário de guarda louças, máquina de descaroçar algodão e, entre os bens semoventes, destacavam-se, por exemplo, cento e oitenta vacas no valor total de três contos e novecentos e sessenta mil réis. Também foi identificado o escravizado Antônio, pardo. (Inventário [...], 1876). Já no inventário da viúva Maria Francisca de Mello, na Povoação de São Rafael, em 1873, a falecida deixou uma dívida de vinte e cinco mil réis ao negociante João de Góis de Vasconcelos Borba, bem como o escravizado Bernardino, pardo, de trinta anos de idade, solteiro e natural do Rio Grande do Norte, tendo sido avaliado pelo juiz no valor de quinhentos mil réis. E José Teixeira de Mello, filho de Maria Francisca, foi o inventariante. (Inventário [...], 1873).

João Domingos da Cunha Lages, falecido em 1886, deixou a viúva Raimunda Paula de Oliveira e os filhos órfãos Olímpia, de 4 anos de idade, e Manoel, de 3 anos de idade. Dos bens partilhados entre a viúva e os herdeiros, aparecem duas mesas com tamboretes, vacas, bezerros, garrote, cavalos e duas partes de terras no Sítio Caiçara com uma pequena casa, além de uma dívida passiva com a firma Machado e Pereira da praça de Pernambuco. Depois do pagamento da referida dívida e das custas do inventário, a viúva recebeu, em sua meação, o valor de oitenta e oito mil e cem réis e cada filho do casal recebeu a quantia igual de quarenta e quatro mil e cinquenta réis. (Inventário [...], 1886).

Um lote de terras no Sítio Caraú foi dividido em dez partes iguais no valor de quarenta mil réis para cada herdeiro. Tratava-se do inventário de João Francisco da Cunha, falecido em 1913, cuja inventariante foi a viúva meeira Bertoleza Francisca da Cunha. Foram herdeiros João Francisco da Cunha, Maria Ferreira da Silva, Manoel Francisco da Cunha, José Francisco da Cunha, Miguel Francisco da Cunha, Francisco João da Cunha, Alexandre Francisco da Cunha Sobrinho, Ana Francisca da Cunha, Joana Francisca da Cunha, Isabel Francisca da Cunha, já falecida e representada por seu marido Luiz Ferreira da Silva e seus filhos João, Luiz, Manoel, Joana Maria e Maria de Jesus. (Inventário [...], 1913).

No Sítio Sacramentinho, em 27 de fevereiro de 1920, abriu-se o inventário da falecida Francisca Maria da Rocha, que foi casada com Manoel José da Rocha. José, Francisco, Alonso já falecido, Joana, Maria Francisca e mais duas Marias compuseram o título de herdeiros da mãe inventariada. As crianças, abaixo dos 10 anos de idade, dividiriam com o pai Manoel José, o viúvo meeiro, as nove vacas, cinco garrotes, uma potrinha, três cavalos, uma égua velha, três jumentos mansos, quinze cabras e oito ovelhas; quatro baús, uma banca, uma máquina de costura, uma mesa, um cilhão velho e uma sela para homem; uma casa de telhas e taipa com um cercado. Ainda constavam dezoito braças de terra no município de Assú. (Inventário [...], 1920). É provável que a falecida Francisca da Rocha fosse uma costureira e, no Recenseamento de 1872, esta profissão se destacava dentre as ocupações na vila santanense.

 

4.    “Sangue bastante pelo chão” em Tanques Pretos

Felix Antônio do Nascimento, agricultor, voltava do roçado acompanhado do sobrinho Manoel Roberto da Cruz, em 2 de março de 1908, quando foi surpreendido pelos seus assassinos José Nunes da Silva, Apolinário de Tal e Antônio Chole no lugar Tanques Pretos. De acordo com José Cassimiro Barbosa, Delegado de Polícia em Santana do Matos, a vítima Felix Antônio sofreu disparos de rifles na cabeça, tórax, região lombar e joelho direito, conforme o exame cadavérico realizado na residência de João Felix de Maria, que era um provável parente do agricultor executado. Além do sobrinho da vítima, foram intimadas as seguintes testemunhas: Adolfo José das Chagas (morador do Sítio Tanques Pretos), Manoel Raimundo de Souza (morador do Tanques Pretos), Tomaz Ribeiro de Souza (morador do Sítio Curicaca), José Justino Pereira (morador do Sítio Acauã) e Francisco Truba (morador da Vila de Santana do Matos). (Juízo [...], 1908).

Manoel Roberto, sobrinho da vítima e testemunha ocular, e as outras testemunhas relataram que o acusado José Nunes da Silva era morador do Sítio Riachão, do Distrito de Flores (atual município de Florânia no Rio Grande do Norte), e que teria uma rixa por disputas de terra com o agricultor Felix. E Nunes teria, no ato da execução da vítima, que não teve chance de defesa, pronunciado estas palavras: “negro do diabo”. Percebemos que Felix, provavelmente, era um homem negro. Ademais, algumas testemunhas só ouviram os disparos de longe e sabiam que assassino e vítima eram “intrigados por questões de terra”. A testemunha Adolfo das Chagas declarou, nos autos, que dias depois da ocorrência foi ao local da execução, onde se destacava uma árvore denominada Jucuri e que teria observado “os vestígios do crime, notando-se sangue bastante pelo chão.” (Juízo [...], 1908, p. 14). Existiriam outras motivações para o crime subjacentes à alegada nos autos desse processo? Racismo? Será que os acusados foram julgados, condenados ou absolvidos?

Entretanto, no município de Florânia encontra-se arquivado, no Fórum Judiciário, um inquérito policial sobre esse mesmo assassinato de Félix Antônio do Nascimento. Nos autos, há uma outra versão para o crime de morte. Félix Antônio seria desertor do Exército brasileiro e havia um mandado de prisão expedido pelo Delegado de Polícia de Flores (atual Florânia). O acusado do crime de deserção teria reagido à prisão, insurgindo-se contra o inspetor de quarteirão José Nunes da Silva Paz e o oficial de justiça Apolinário Ferreira de Macedo. Esse inquérito ainda informa que Félix teria investido contra esses homens com uma foice bradando que “matava um diabo desses”. As testemunhas, quase todas moradoras do Sítio Riachão, identificadas como Antônio Fernandes de Morais, Francisco Geraldo das Chagas e Luiz Gonzaga do Nascimento sustentaram a versão de que Félix resistiu à prisão e tentou golpear com uma foice os agentes da delegacia. Assim, conforme essa nova versão do homicídio, é provável que houve absolvição dos assassinos do agricultor. (Inquérito [...], 1908, p. 9).

 

5. Considerações finais

            A análise das fontes forenses de Santana do Matos revela um complexo espaço material e social, contribuindo para pesquisas historiográficas e genealógicas. As peculiaridades dos lugares com alguns nomes evocativos de memórias ancestrais, a espacialização dos sítios, os rebanhos de gado, as casas e seus interiores com mesas, baús, malas de pregarias e outros objetos pessoais e de usos domésticos, os escravizados no meio do espólio de determinados inventários post-mortem, os conflitos sobre terras, além das manifestações religiosas e de afetos por testadores em suas últimas vontades, foram descortinando a vila santanense na transição do século XIX para o século XX.

            Várias partilhas de bens apontaram para os passos de uma mesma família com suas redes de consanguinidades, sociabilidades, interesses e disputas, a exemplo dos Carvalho e Silva, Silveira Borges e Rocha Pita. Esses núcleos familiares compuseram uma elite rural, destoando de outras famílias santanenses que não tinham recursos financeiros, título de terras e bens a inventariar depois da morte, as quais sofreram uma invisibilidade social e documental.

            As diversas fontes deste estudo puderam dialogar com outras pesquisas sobre Santana do Matos para propormos investigações sobre as comunidades quilombolas e sobre os ricos vestígios materiais deixados, em muitos lugares, pelos povos originários da região. Alvitramos novas pesquisas, por exemplo, sobre a cultura material advinda dos bens arrolados nos inventários post-mortem, e uma pesquisa mais acurada sobre os escravizados inscritos nesses registros judiciais. E, para além dos dados dos censos populacionais, os registros forenses podem ser articulados aos registros paroquiais e cartoriais, principalmente na Genealogia. Ademais, o confronto dos dois inquéritos policiais sobre o assassinato de Félix Antônio do Nascimento mostrou diferentes versões dos fatos com o concurso de várias testemunhas a favor ou contra o agricultor morto.

 

 

 

Referências

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400 nomes de Natal. Coordenação Rejane Cardoso e redação Deífilo Gurgel et al. Natal, RN: Prefeitura Municipal de Natal, 2000.

 



[1] Graduado e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisador em História e Genealogia. Membro da Comissão Editorial do periódico eletrônico BiblioCanto (UFRN). Técnico-Administrativo em Educação da UFRN.

[2] Pesquisador em Genealogia. Policial Militar do Rio Grande do Norte.

[3] Maria Beatriz Paz Barreto casou-se com Manoel de Mello Montenegro Pessoa, em 08 de janeiro de 1835, na Freguesia do Assú, Rio Grande do Norte. Ele era filho de Manoel de Mello Montenegro Pessoa e Ângela Garcia de Araújo Freire. E ela era filha do Capitão Manoel Varela Barca e D. Francisca Ferreira Souto. (Casamento [...], 1823-1862).

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