quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Nossa Atlântida, por Edgar Barbosa


Nossa Atlântida
Macau nasceu do mar revolto e se estendeu por terra, com o seu povo de salineiros e de pescadores, ouvindo e aprendendo o marulho bravio das ondas. O destino quis que ela tivesse um nome evocativo das longas e aventurosas viagens aos portos do longínquo Oriente. Um nome que se pronuncia imaginando iates, gôndolas, falúas, barcos de velas brancas, gemendo cantigas de gajeiros e arfando nas enseadas de países distantes.
Mas, no burburinho de tantas sugestões românticas que esse nome desperta, ninguém conseguiu fazer ressurgir do abismo em que se afogou, a ilha de Manoel Gonçalves, a nossa perdida Atlântida, que ainda não encontrou o seu Platão.
A Ilha de Manoel Gonçalves, tal como nos parece na imaginação sempre disposta a iludir-se e a sonhar, não foi nenhuma dessas cidades contra as quais a ira oceânica se desmandou implacavelmente. Era uma feliz aldeia de pescadores sem vícios nem crimes que chamassem a si o castigo dos elementos. O mar, em luta com a terra, enrolava parceis e recifes, arrastando-os no dorso das vagas. A humilde ilhota de pescadores, no meio do tremendo campo de batalha, assistia inquieta às escaramuças que arrancavam pedaços do seu solo. E enfim, um dia, apenas viçou sobre a imensidão oceânica o pugilo derradeiro de terra, pedestal de uma cruz que abria os braços, clamando e perdoando. Os habitantes fugidos da ilha condenada e moradores da margem direita do rio foram em procissão de ladainhas e preces, buscar o cruzeiro que o oceano havia respeitado. E em Macau os seus primitivos povoadores continuaram a amar e venerar os velhos santos, as queridas imagens e a cruz que abençoara a agonia da ilha perdida.
Foi assim que morreu, há muitas dezenas de anos, a ilha de Manoel Gonçalves, afogada no delta indomável do Rio Piranhas. Mas, do amarfanhado lençol marinho que a sepulta ela por vezes aparece, como uma Vitória Régia, numa ressurreição. As suas ruínas, as pedras das suas casas, os tijolos das suas calçadas onde tantos meninos brincaram e correram, cantando e sorrindo para o mar, ainda afloram aos olhos supersticiosos dos pescadores, pelas noites de lua.
A Ilha de Manoel Gonçalves morreu para que a cidade de Macau nascesse. Nenhuma semente de terra dessas milhares que Deus semeou pelo mar teve um destino tão lindo. Macau surgiu, cresceu para o oceano revolto, transformou a água invasora em pirâmides de sal que cintilam como um diadema de imperatriz. E já agora não é mais possível trocar por nenhum ouro do mundo toda a pobre existência ignorada da ilha que morreu do mal de ser feliz.
EDGAR BARBOSA