sexta-feira, 3 de abril de 2020

Traído e caluniado


Por João Felipe da Trindade
jfhipotenusa@gmail.com 
Este artigo foi publicado pelo alferes J. da Penha, no Jornal do Ceará, o que lhe valeu a prisão, em 1904

Culminam presentemente as amarguras do povo brasileiro, de há muito seviciado pelas torturas políticas.
O trágico inesperado de uma comoção violenta, acaba de precipitar-lhe sobre o coração uma catadupa de sentimentos penosos, mas agravados ainda pelo misterioso das comunicações telegráficas.
Depois de ludibriado numa esperança, vê Lauro Sodré infamado numa campanha maldita, ou, mais ajusta, atraído numa cilada abjeta. Conchavaram-na, em tenebroso conciliábulo, e rancorosa vaidade de um chicanista, exaltado ao ministério e a perfídia,  mais que verossímil, de algum general de opereta, com tácito ou expresso consentimento de 20 oligarquias.
Mas não surtirá os colimados efeitos a suspeitada maquinação, em que o verdadeiro engodado não foi aquele representante imaculado e bem querido do povo, senão este mesmo, que agora mais o aprecia, destaca no exame de pigmeus que tentam detrair de um gigante de sua corpulência.
As carabinas acertaram nos peitos, mas daí não extirparam as convicções; esfacelam, esmigalham os crânios, mas não desfazem esperanças, nem apagam o rastro luminoso das ideias, sorteadas para o triunfo.
Nas pressões magoam-se as vítimas, não se trituram, porém, reputações, nem se aniquilam apostolados. Não há conquista sem lutas, nem luta sem sacrifícios.
A história da liberdade é um poema de dores e, mais de uma vez as sombras da morte velaram de tristeza as radiações do direito e da justiça.
Poderão os labéus, quando muito açular os melindres de homens pundonorosos; jamais entibiarão as consciências, alentadas pelo civismo e santificados pela virtude.
O sarcasmo, que a própria Divindade pode malfazer, só macula e desprestigia, quando quem o dardeja fita os olhos na imagem veneranda dos princípios, tendo de seu partido o empenho e o desprendimento, de par  com a religião do bem e da verdade.
Baldamente forcejarão os liliputianos, por esconder sua falsidade quando articulam calunias e despejam invectivas às plantas, que lhes superam as cabeças, de um Lauro Sodré e outros de igual porte.
Ilaqueiam a boa-fé dos ignorantes, mas não engrossam por muito tempo as fileiras de sua campanha.
A boa fama, que o notabiliza é a projeção, em verdadeira grandeza, da luz de sua mentalidade seleta, harmonizada com o seu edificante viver público e doméstico, extremes de quaisquer nódoas.
Bem longe está de ser aferida pelo deboche de certos jogadores, pela subserviência proverbial de certos deputados. Não orça pela cultura meã e gana desabrida, porque se caracterizam os rabiscadores  de artigos farfalhantes, onde a retórica de preparatoriano anda a correr aposta com a veracidade e a sabujice, de candidato â Câmara dos nulos.
Do seu passado inteiriço de benemerências é documento a suprema investidura de Grão Mestre, com que o distinguiu o povo maçônico.
A injustiça distributiva do acaso e a delação infamante de conjurados que, talvez, se afoitaram a tanto, mercê da lealdade cristalinamente pura do prisioneiro do Deodoro, não lhe ganharão o prestígio, e antes vão redobrá-lo.
Quem reage é mais necessário ao mundo e ao progresso, do que  os opressores do povo e os submissos a todos os governos.
Não há como a perseguição para operar prosélitos e sagrar a imortalidade  dos heróis ou a veneração dos mártires. Para que servem as dilatações interesseiras da loquacidade dos alugados do Rio, admiradores ao certo, do seu ultrajado de hoje?
Mais de uma vez não foi carinhosamente citado nos seus jornais, por cujas portas, então se esgueiravam os vultos anafados e dinheirosos de Frederico Gambá e Antônio Lemos?
Acaso comprimirão, com o seu despeitado terror, a grandeza excepcional do amor e da confiança posta em Lauro Sodré? Nunca! Houvesse o destino repartido embora sumiticamente, com todos esses desatinados, alguns retalhos de perspicácia, dignidade e bom senso, e teriam de economizar para tempos mesmos sombrios, o dinheiro desses telegramas congratulatórios, coimados de imenso ridículo, e tracejado ainda sob a pressão do medo.
Inquinar de suspeito à República o seu mais lídimo defensor!
Seria por demais revoltante, se não fora estupidamente desajeitado. Requeimaria os lábios do acusador, se não fosse em todos os Estados e no D. Federal, da laia dos Fredericos e dos Studarts.
Inimigo  dessas mediocridades viciosas, inimigo dos inimigos encapuçados da República, isso é o que Lauro Sodré tem sido, sem descontinuar.
Afrontar-se com o perigo destemidamente, até o sacrifício heróico do próprio sangue, foi que ele fez.
Alvejou o governo, insurrecionando-se?
Mas então era no altar da República, interdito aos republicanos, que ele tentava imolar-se pela sua religião de toda a vida. Os falsários e os dilapidadores do Banco da República estão sem idoneidade para julgá-lo.
No presente é o suposto tenente-coronel amotinado; para o futuro, quando a ressureição do sonho de Benjamin for uma realidade, trocar-se-ão os papéis. Será o manso precursor das esperanças dolorosas de uma geração, impiedosamente batida dos temporais do infortúnio.
Será o predestina para concretizar, entre nós, o direito sacrossanto, que os povos têm de revolucionar-se, como o governo de se defender.
Haverá quem o conteste de boa mente? É possível. Mas se não for um direito, é pelo menos uma fatalidade histórica, de que todas as idades mostram dos lutuosos vestígios.
Querem mais uma prova? Deixem armar ao povo, e o exército desapareça, ou se neutralize.
Ao tempo do próprio direito divino, já se depunham os reis, traidores de seu juramento.
Os percussores de Montesquieu, de Rousseau, e tantos outros que evangelizaram a política, são coevos das primeiras sociedades humanas.
Blunstchli é da nossa era: mas a Belisário, o justo, o valoroso e sábio general romano, atribui o abalizado Marmotel em  discurso, por onde se aprenderão ensinamentos iguais aos do publicista moderno. “ A lei, fala mais ou menos Belisário, pela boca de Marmontel, é o acordo de todas as vontades reunidas em uma só, e tendo para sustentá-la o concurso de todas essas forças”. Quando o capricho de um déspota quiser que vigore uma lei injusta, promulgas pela singularidade de sua opinião, é preciso dividi-la, encadeia-la, destrui-la, combatê-la.
Foi o que sucedeu com o Sr. J. Seabra e o seu monstruoso regulamento em preparação.
Quiseram alguns propugnar pelos direitos da natureza diante dos quais bem podiam ali preterir o da nossa Constituição.
Que lhes fizeram? Descarregaram-lhes a espada para cortar as cabeças erguidas para o céu.
Escravos não olham para cima, arrastam-se de cerviz arqueada e lábios suplicantes...Está bem...Vamos para a frente...Nem tudo está perdido...Dos conflagrantes desejos do povo e do Ministro, certo que hão de manar benefícios para os liberais, atualmente sacrificados aos delírio do quero, posso e mando.
Em todos os recontros, ainda quando se apropriam do campo, os vencidos são sempre os conservadores, puchantes a reacionários.
Encarna Lauro Sodré, - o militar pacífico e modesto, o radioso futuro, talvez dos nossos netos. Ressurge no Sr. J. Seabra – o vaidoso legista arruaceiro, - a peia e mais instrumentos degradantes dos ominosos tempos do cativeiro colonial.
É jurista, mas incapaz de praticar o direito, por lhe faltarem o senso e a retidão. Transportaria para nosso meio, enxertaria no nosso corpo, ad instar do famigerado Regulamento, (pelo qual só os vacinados podem locomover-se, comerciar, etc., livremente) as leis inquisitoriais do beatismo espanhol do tempo de Torquemada. É com a máxima propriedade, um desassisado feliz.
Ceará, - novembro de 1904 - J. da Penha
Nota do Jornal Pequeno (22 de dezembro de 1904) – este artigo, foi publicado no Jornal do Ceará, de Fortaleza, em 7 do corrente e determinou a prisão do autor que se acha recolhido à sede do 2º distrito militar, no estado-maior do 27º batalhão de Infantaria.
O alferes J. da Penha é um dos mais belos ornamentos intelectuais do exército brasileiro e seu nome tem firmado trabalhos publicados na imprensa do Brasil, principalmente na Capital Federal.
Alguns dos seus trabalhos estão reunidos em volumes, dos quais são por nós conhecidos: O Espiritismo e os Sábio e Pela Pátria e pelo Exército.
Neste último volume são encontrados  escorços burilados com admirável talento, num estilo que é próprio e que revela o merecimento de quem o maneja, em polemica travada com alguns de nossos mais respeitados homens de letras.