Essa carta está no livro "Valeroso Lucideno" de Frei Manuel Calado. Foi escrita 20 dias após o massacre de Uruassú.
“Relação das últimas tiranias, e crueldades, que os pérfidos holandeses usaram com os moradores do Rio Grande, escrita pelo Capitão Lopo Curado aos dois mestres de campo, e governadores da liberdade de Pernambuco, João Fernandes Vieira, e André Vidal de Negreiros, cujo traslado de verbo ad verbum, é o seguinte:
“Relação das últimas tiranias, e crueldades, que os pérfidos holandeses usaram com os moradores do Rio Grande, escrita pelo Capitão Lopo Curado aos dois mestres de campo, e governadores da liberdade de Pernambuco, João Fernandes Vieira, e André Vidal de Negreiros, cujo traslado de verbo ad verbum, é o seguinte:
Em particular aviso a
Vossas Senhorias do memorável sucesso do Rio Grande, depois das duas matanças
que fizeram os tiranos Flamengos, acompanhados de bárbaros Tapuias e
Pitiguares, e nesta derradeira, certo que é incrível a tirania, no qual servirá
de maior exemplo, e que escureça todas quantas têm sucedido no mundo em tempo
dos imperadores romanos antigos; memória que haverá enquanto durar o dito; pois
o sangue derramado de tantos inocentes, clama aos céus justiça,
e aos príncipes da terra favor, a tomar vingança de tais tiranos: e para
relatar os sucessos, e modos que houve entre os ditos Flamengos de suas
deslealdades, e traições, é tomar o tempo a Vossas Senhorias, ainda que o mesmo
o há de manifestar; porque tais tiranos quer Deus que os conheçam, para que a
cristandade veja, que mais vale passar por todos os tormentos da morte, que
viver morrendo entre o nome de tal gente. Patente é a Deus, e ao mundo, e o
será daqui em diante às mais remotas nações dele, a traição que usaram os ditos
holandeses com os pobres moradores do Rio Grande, estando em uma cerca
recolhidos por se livrarem dos bárbaros Tapuias, e Brasilianos, passando, e
padecendo nela havia três meses notáveis misérias, nos quais foram acometidos
por muitas vezes dos tais inimigos, que ainda não fartos do sangue, que fizeram
derramar ao povo de Cunhaú, e casa forte de João de Lostao, pretenderam esgotar
o desta pobre gente cercada, para que nela se acabasse o nome português daquela
Capitania, para o que dezesseis dias, e noites os tiveram em cerco, assim Tapuias,
como Brasilianos e Flamengos, nos quais lhes deram terríveis batarias sem as
poderem levar, usando de um ardil, para com ele fazer a obra que pretendiam. E
foi, que armaram uns carros emadeirados, levando-os diante de si, com
mosquetaria, e outros instrumentos de guerra para chegarem à dita cerca, mas
não foi bastante este artifício, porque setenta portugueses que havia nela,
ainda que poucos no número, mais muitos no esforço, os arredaram de si de
maneira com quinze armas de fogo, e os mais com paus tostados, que lhe
quebraram os carros, e os puseram em fugida com perda do dito inimigo de vinte
homens, sem da nossa parte perigar nenhum, e vendo os ditos Flamengos que os
não podiam render, lhes cometeram que se entregassem, pois eles eram ali vindos
da fortaleza, e seu tenente, para os guardarem assim dos ditos selvagens, como
dos Flamengos moradores, que com os ditos estavam, os quais lhes tinham feito
aquela guerra. E vendo os ditos moradores o tão pouco que se podiam fiar da
palavra de tiranos, disseram, que enquanto ali estivessem Tapuias, e Brasilianos,
queriam antes morrer, que se entregar; e que tinham bom exemplo na traição das
mortes, que fizeram no Cunhaú na casa forte de João de Lostao, ao que lhes
responderam, que em nome de S. Alteza o Príncipe de Orange, lhes requeriam se
entregassem, e não usassem mais de armas, prometendo-lhes vidas, e fazendas, na
maneira que até então os gozavam, e fazendo o contrário que mandariam vir uma
peça de artilharia da fortaleza, e com ela os bateriam, e não escaparia nenhum,
e os teriam por alevantados. E considerando os ditos cercados, que já não
tinham mantimentos nenhuns, nem munições para sustentar as armas, fiados nas
palavras dos ditos Flamengos, lhes disseram que fizessem disso um papel, o qual
fez o tenente, e os mais oficiais de guerra, em que se assinaram, e nele lhes
prometeram de os guardar dos ditos selvagens Tapuias, e Brasilianos, e
conservar com a vida, e fazenda; e feito o sobredito, pediram que em reféns
haviam de levar cinco moradores para a fortaleza, o que lhes foi concedido: os
quais foram Estêvão Machado de Miranda. Vicente de Souza Pereira, Francisco
Mendes Pereira, João da Silveira, Simão Correia, deixando eles dez soldados de
guarda da dita cerca, e gente que nela estava; e tomaram todas as armas de
fogo, e paus tostados com que os moradores se tinham defendido. Estavam mais
recolhidos para segurarem suas vidas na fortaleza o P. Vigário Ambrósio
Francisco Ferro, Antônio Vilela o Moço, Joseph do Porto, Francisco de Bastos, e
Diogo Pereira, e prisioneiros João Lostao Navarro, Antônio Vilela Cide. Em dois
do presente mês de outubro chegou uma lancha do Recife ao Rio Grande, e
conforme a execução que se fez, trouxe ordem para matar a todos os moradores de
dez anos para cima, como ao diante se verá; em três do dito mês véspera de S.
Francisco mandaram os Flamengos da fortaleza sair a todos os moradores que nela
estavam, que foram os acima nomeados dizendo que já estavam seguros dos Tapuias,
porquanto se tinham ido para o sertão, e que fossem em companhia da tropa que
ia em sua guarda para a cerca aonde estavam os outros moradores, visto haver lá
muitos mantimentos com que se podiam sustentar, e não estando na dita fortaleza
passando fomes por falta de mantimentos, e que iam seguros porquanto tinham lá
na dita cerca aos ditos dez soldados, que lhes tinham deixado para sua guarda.
No mesmo ponto lançaram aos ditos, que estavam na fortaleza, e em batéis os
levaram pelo rio acima três léguas, acompanhados dos soldados, e os lançaram
fora no porto do dito rio, chamado de Huruauassu meia légua da dita cerca, na
qual acharam passante de duzentos Brasilianos bem armados com Antônio Paraupaba
escaramuçando em um cavalo, e tanto que estiveram em terra, os Flamengos
despiram nus aos ditos moradores, e os mandaram pôr de joelhos (o que eles
receberam com muna paciência, e os olhos em Deus) e logo chamaram aos Brasilianos
para os matar, o que se executou logo, fazendo nos corpos destes mártires tais
anatomias, que são incríveis; e não contentes com elas, os ditos Flamengos os
ajudaram a matar, assim arrancando os olhos a uns, e tirando as línguas a
outros, e cortando as partes vergonhosas, e metendo-lhas nas bocas. No mesmo
instante que os acabaram de matar, foram os ditos Flamengos à cerca deixando os
Brasilianos no lugar em que tinham feito os martírios nomeados para a segunda
execução; e aos moradores disseram, que os senhores do Concelho do Recife os
mandavam chamar, para o que estava um barco logo para partirem, e que fossem em
sua companhia para os embarcarem, e vendo os sobreditos que era a viagem tão
apertada, sem lhes darem demora alguma, e sem saberem dos que eram mortos, e
disseram todos juntos, e cada um por si, que eles iam morrer, porque seus
corações lhos diziam; e despedindo-se com lágrimas, e suspiros de mulheres,
filhos, irmãos e irmãs, foram todos dando graças a Deus, e mui conformes, por
morrerem por seu Deus, e por seu Rei, e sua pátria, e dizendo estas mesmas
palavras aos tiranos algozes que os levavam; e chegando aonde estavam os
sobreditos Brasilianos lhos entregaram, e com a tirania, e desumanidade que em
seus corações habita, os mataram, sem ficar nenhum; na qual execução se fizeram
as maiores anatomias, e martírios nos corpos destes mártires, que são coisas
que a boca não pode pronunciar. E acabante as ditas mortes deixaram os corpos
postos ao sol, e sobre a terra, e sem sepultura nenhuma, e os membros tão
divididos em partes, que não se conhecia quais eram os de cada um dos ditos
mártires. No mesmo instante foram os mesmos tiranos Flamengos, e Brasilianos à
cerca, aonde somente ficaram as pobres viúvas, e órfãos, e as acabaram de
despojar de todos seus bens, deixando-as a muitas nuas, e com outros opróbrios,
que passo em silêncio. Julguem agora Vossas Senhorias o que fariam as pobres
viúvas, quando souberam dos mesmos algozes, que todos os homens eram mortos, e
tão cruelmente, para que os olhos se aprestaram a fontes, e as bocas, para as
funerais lamentações de seus consortes, pois é de ver (meus senhores) que até
isto estes tiranos tiraram a esta pobre gente, porque querendo lamentar com
suspiros, e lágrimas seus desventurados dias; estes tais lho não queriam
consentir, e as fizeram calar, ora com ruins palavras, ora com pés, e mãos,
dando-lhe de bofetadas, e coices, e ameaçando-as, que as haviam de matar se
choravam; e por não passar em silêncio nas pessoas, e nomes de alguns mártires,
os declararei por a constância que tiveram em suas mortes, e martírio, Antônio
Baracho casado o amarraram em um poste, e vivo lhe arrancaram a língua, e
depois o coração, e desta maneira morreu, cortando-lhe suas partes secretas, e
metendo-lhas na boca ainda em vivo. A Mateus Moreira o abriram por as costas, e
lhe tiraram também o coração, e as últimas palavras, estando neste martírio,
que disse, foram louvar a Deus, dizendo: Louvado seja o Santíssimo Sacramento.
E porque na morte destes Inocentes, houvessem admiráveis circunstâncias,
relatarei a Vossas Senhorias algumas coisas que sucederam mais milagrosas que
humanas. Um mancebo por nome João Martins o levaram para morrer com os mais, e
sendo todos mortos à vista do sobredito, lhe cometeram que dariam a vida se
tomasse armas contra sua nação, a que ele respondeu com alegre rosto: Não me
desampara Deus desta maneira, essas tomei sempre contra os tiranos, e não
contra minha Fé, Pátria, e Rei. E que o matassem logo porque estava invejando
as mortes de seus companheiros, e a glória que tinham recebido, e quando o não
quisessem matar, ele mesmo os persuadiria a que o fizessem.
Dois mancebos casados, um
chamado Manuel Álvares Ilha, e outro Antônio Femandes, depois de estarem em
terra cheios de feridas, e nus da cinta para cima, meteram as mãos nas
algibeiras, e puxando cada um por sua faca, e investindo com os Brasilianos
mataram logo a três deles, e feriram a quatro ou cinco, fazendo isto com as
ânsias da morte, e logo caíram mortos outra vez. Estêvão Machado de Miranda
tinha uma menina de sete anos sua filha na fortaleza em sua companhia, e
trazendo-a consigo a receber o martírio, vendo a dita menina que os Flamengos
queriam matar a seu pai, como aos outros presentes, se abraçou com ele, pedindo
a vida do pai com as lamentações, e entendimentos de mulher de muitos anos, e
os Flamengos a tiraram dos braços do dito pai, ao que lhe disse o dito: Filha,
dize a tua mãe que se fique embora, que no outro mundo nos veremos. E desta
maneira o mataram, e a menina tirou a saia depois do pai morto, e se foi para
ele, e cobrindo-lhe o rosto, e chorando, e pedindo que a matassem também, a
quem os ditos algozes lançaram mão da dita saia, e trouxeram a menina a sua
mãe, e ela, e os mais contaram o caso. Uma filha de Antônio Vilela o Moço
mataram sendo criança pequena, pegando-lhe os Tapuias à vista dos Flamengos em
uma perna, e dando-lhe com a cabeça em um pau, e a fizeram em dois pedaços. E a
outra filha de Francisco Dias o Moço a mataram também, e a abriram em duas
partes com um alfanje. E a uma mulher casada com Manuel Rodrigues Moura, depois
do dito morto, lhe cortaram as mãos, e os pés, e a sobredita mulher em três
dias naturais esteve deitada no chão viva, e acabou dando a alma ao Criador.
Diversos martírios deram
neste dia aos corpos dos mártires, e houve nele muitos milagres patentes, e vistos,
que quis Deus mostrar que os tais iam a gozar da bem-aventurança.
Sucedeu pois que aquela
noite que padeceram se ouvisse uma música no céu sobre a fortaleza do Rio
Grande, e ouvindo-a a mulher de um flamengo chamado Gesman (Joris Garstman)
governador das armas nesse Recife, se levantou chamando por algumas mulheres, e
também por suas escravas para que ouvissem a música que ia no céu, o qual caso
testificou a sobredita; certo presságio que foram os anjos que acompanhavam as
almas destes mártires para o céu. Na cerca donde tinham saído os ditos mártires
estava entre outras meninas uma filha de Diogo Pinheiro de idade de oito anos,
chamada Adriana, e dando-lhe vontade de chorar, entrou para uma camarinha por
não ser vista, aonde achou uma mulher com um azorrague na mão, e lhe disse:
Cala-te filha, que com este azorrague que aqui vês, hão de ser castigados estes
que fazem estas crueldades, como logo saberás.
Atribulada a menina saiu
para fora, e vendo as mulheres a mudança dela, lhe perguntaram o que tinha? E
como assombrada contou o sucesso, e dai a pouco chegou a nova dos inocentes
mortos, que certo bem parece que a Virgem Senhora Nossa tem tomado o castigo
destes tiranos à sua conta. Naquela mesma noite houve grande cheiro de incenso
na dita cerca, que durou muito tempo, e foi patente a todos, sem se saber donde
o dito cheiro procedia senão do céu. Houve também entre estes mártires grandes
penitências, sem saberem uns dos outros, e ao dia que padeceram, jejuavam todos
a pão, e água, assim os da fortaleza, como os da cerca, não sabendo uns dos
outros, ao outro dia por manhã pediram licença as mulheres para irem a enterrar
os corpos mortos, e não lh'o consentiram; o que os escravos fizeram às
escondidas, e não se achou um palmo de pano para os amortalharem a nenhum, por
deixarem as ditas mulheres em estado que ficaram despidas de todo, achou-se que
todos estes corpos estavam com cilícios, e os que os não tinham com cordas
cingidas, e algumas tão metidas por a carne que mal apareciam. E sabe-se que
durante o tempo que estavam cercados houve extraordinárias penitências, e até
os meninos as faziam, sendo todos nus, e com cordas cingidas, e todos os dias
se faziam procissões com um Santo Crucifixo, esperanças claras destas almas
estarem gozando da bem-aventurança. Sobre a sepultura aonde foi enterrado o P.
Vigário Ambrósio Francisco Ferro se achou quinze dias depois da sua morte uma
posta de sangue fresca sem corrupção, como se naquela hora fosse derramado,
mostras bastantes, que o tal brada ao céu justiça. Muitas outras coisas
milagrosas sucederam, dignas de se recontarem, que deixo ao tempo, no qual fio
não passará, e todas acima declaradas foram vistas, e juradas, e autênticas por
vinte cinco mulheres que o inimigo botou nesta Paraíba, com suas famílias, as
ditas chegaram de maneira, e tão transfiguradas que mais parecem pessoas
ressuscitadas que viventes corpos.
O Bolestrate as mandou
deitar aqui, e a algumas lhes concedeu alguma roupa que traziam sobre os
corpos, mas em as querendo desembarcar em terra as despiram de maneira que
apenas trouxeram camisas, as quais lhe largaram por já não terem préstimo para
serviço de outro corpo. Vossas Senhorias perdoem o compêndio da carta, que lhes
afirmo que se houvera de relatar o que se tem passado naquela Capitania houvera
mister muitas mãos de papel, contudo o faço destas sobre ditas coisas acima,
que não faltarão curiosos para o fazer do mais que falta, porque Deus o
permite, e manda que sejam públicas as maldades destes tiranos.
Deus guarde a Vossas
Senhorias, hoje vinte e três de outubro de mil e seiscentos e quarenta e cinco
anos. Lopo Curado Garro”.
Parte de uma Genealogia de Antonio Vilela Cid e Estevão Machado de Miranda |
Parabéns pela divulgação desse documento. Lopo Garro foi o comandante das tropas que expulsaram os holandeses da cidade de Filipéia de N.S. das Neves (atual João Pessoa) em 1645, e compôs o triunvirato que governou a Capitania da Parahyba durante 5 anos. Em razão dessa carta, Garro é considerado o primeiro escritor paraibano a ter um trabalho publicado e é o patrono da cadeira nº 8 do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.
ResponderExcluircarlos®oberto
Esse é um documento importante porque faz um registro dos acontecimentos tão degradantes da nossa História
ExcluirImportantíssimo documento. Já tinha lido há alguns anos, porém nunca vi o original. Parabéns João Felipe por mais esta contribuição para a História do nosso País.
ResponderExcluirParabéns.
ResponderExcluirTem outro lado essa história, não é?
Toda história tem o lado de quem conta. Outro autor que escreveu sobre os mesmos fatos incluiu informações não tão verdadeiras como a de LOPO CURADO, que escreveu isso 20 dias depois do ocorrido, contado pelos sobreviventes.
ExcluirAmigo, qual seria esse outro autor que incluiu essas informações?
ExcluirVenho fazendo um apanhado das fontes
Não lembro do nome de um notável pesquisador pernambucano - José Gonçalves de Mello? -que escreveu sobre o "massacre" em Barra de Cunhaú. Já o de Uruassú, tem outra história.
ResponderExcluirTeria sido resultado das conspirações ordenadas pelo Reino de Portugal?