A Ilha de Manoel Gonçalves, há duzentos anos atrás
João Felipe da Trindade (jfhipotenusa@gmail.com)
Professor de Matemática da UFRN e membro do INRG
Em 1803, em Recife, faleceu Dona Maria Theodora Moreira de Carvalho, avó de Maria Theodora, personagem da Revolução de 1817, e no ano seguinte seu esposo, Domingos Affonso Ferreira, casal que em 1797 comprou, em sociedade com o genro, Coronel Bento José da Costa, pai da noiva da revolução, vastas terras no sertão do Assú. Foi inventariante o próprio Bento José da Costa. Por isso, Bento solicitou, somente em 1810, avaliação dos bens como segue:
Diz Bento José da Costa por si, e como inventariante dos bens do casal dos falecidos Domingos Affonso Ferreira e Dona Maria Theodora Moreira de Carvalho, e co-herdeiro do mesmo, que o sobredito casal, de sociedade com o suplicante, tem no Sertão do Assu, Distrito da Vila Nova da Princesa, três Fazendas situadas com gados vacuns, cavalares, escravos, e mais acessórios, correspondentes as mesmas denominadas Entradas, Amargoso, e Cacimbas do Vianna, assim como ilhas, salinas, pesqueiras, e mais terrenos anexos que foram apontadas pelo Procurador bastante do suplicante, cujas propriedades as houve por compra feita a Francisca Rosa da Fonseca, e por que o suplicante quer avaliar estes bens para concluir o inventário, devem ser todas as Fazendas, terras, tudo o mais correspondente a dita compra avaliado junto na forma da compra, pelos avaliadores daquele território, onde tudo se acha situado, requer o suplicante a Vossa Senhoria mande passar carta precatória para as justiças de dita Vila para em cumprimento fazer avaliar tudo, e remeter a avaliação a este Juízo.
O Procurador nomeado por Bento, José Álvares Lessa, solicitou que, por conta da distancia e outros inconvenientes, a avaliação fosse feita na Ilha de Manoel Gonçalves, onde ele residia. Foram nomeados para avaliadores o Ajudante José Caetano da Costa e o Alferes Antonio Caetano Monteiro. Segue o termo de juramento de José Álvares Lessa.
Aos vinte e cinco dias do mês de Agosto de mil oitocentos e dez anos, neste lugar da Ilha, denominada de Manoel Gonçalves, termo da Vila Nova da Princesa da Capitania do Rio Grande, da Comarca da Paraíba do Norte, em casa de residência do dito Procurador para onde foi vindo o Juiz de Órfãos, o Alferes Felipe Manoel da Cunha, comigo escrivão do seu cargo, adiante nomeado, e os avaliadores nomeados para efeito de se avaliarem todos os bens conteúdos na carta presente retro: e aí estava presente o Comandante José Álvares Lessa, procurador bastante do Coronel Bento José da Costa, àquele deferiu, o dito juiz, o juramento dos Santos Evangelhos em um livro deles na forma do estilo, e por ele lhe encarregou que com boa consciência declarasse os bens conteúdos no despacho retro, e todos os mais que neste Distrito, e termo houvesse pertencente ao casal do falecido Domingos Affonso Ferreira de sociedade com seu genro Bento José da Costa da predita compra: o qual juramento sendo por ele procurador recebido assim o prometeu fazer, e cumprir debaixo do mesmo juramento com a verdade que costuma; e sendo lhe lido este seu juramento o assinou com o dito juiz; e eu Manoel de Mello Montenegro Pessoa, escrivão de órfãos o escrevi = Cunha= José Álvares Lessa.
Na seqüência, o Procurador, e Comandante da Ilha de Manoel Gonçalves, administrador das propriedades do casal falecido, no Sertão do Assú, José Álvares Lessa, descreve todos os bens com os valores vistos e avaliados pelos sobreditos avaliadores. Entre os bens descritos listou os seguintes: machados, enxadas, foices, enxós, trado de abrir pipas, verrumas, serrotes, serras, ferros de calafete, caldeiras de ferros, tinas, balanças, carros com suas cangas e várias barcaças e canoas. Embora o documento seja riquíssimo em informações sobre todas as ilhas, rios, pesqueiras, salinas e fazendas, nos interessa para este artigo, e neste momento, a descrição da Ilha de Manoel Gonçalves, pois, sempre alguém me pergunta que tamanho ela tinha. Assim, logo após a descrição dos bens existentes na Ilha, segue, no título de terras, em primeiro lugar, a Ilha de Manoel Gonçalves, de onde se administrava todo o restante, e posteriormente as outras propriedades assim denominadas: Ilhas do Lagamar e Coroa Grande; Ilha do Balthasar; Ilha do Janduhín; Ilha do Madeira; Ilha do Tubarão e Tubarãozinho; Ilha de Fernando; Pontal de Guamaré; Ilha do Pisa Sal; Ilha de Santa Anna; Ilha das Quatro Bocas; Ilha de Macáo; Salinas dos Sítios das Barreiras, Armazéns, Cambôa do Sal e Trapixe, em uma única propriedade; e as Fazendas Entradas, do Amargoso, e Cacimbas do Vianna
Declarou o dito Procurador Inventariante mais do dito casal, neste termo, na conformidade da dita compra e sociedade, a propriedade mencionada da terra toda da Ilha denominada = de Manoel Gonçalves = com trezentas braças de largura de Norte a Sul; um quarto de légua de comprimento de Leste a Oeste, ou de Nascente e do Pontal do Rio Arrombado ao Poente até o da Barra do Rio do mesmo nome de Manoel Gonçalves ao longo, e paralelo da Costa do Mar, de que é lavada pelo lado Norte: com água doce dentro, pesqueiras de currais de peixe na Costa do Mar; vinte pés de coqueiro, casa de telha e taipa, com cômodo da assistência do dito Administrador, e Procurador Inventariante, armazém de peixe seco, senzala dos pretos escravos, oratório de se pedir missa com três ornamentos roxo, branco, e encarnado; cálice, e patena de prata; castiçais, e ramalhetes prateados no altar: tudo visto e avaliado pelos avaliadores por preço e quantia de um conto e seiscentos mil réis, com que sai 1:600$000.
Ainda no título de escravos, havia um total de 18, sendo 15 pretos de Angola, um preto crioulo, uma preta de Angola, Maria, de 30 anos e um escravinho Luiz, de três anos, filho da dita Maria. As idades dos adultos variavam de 14 anos até 70 e tantos anos; e os preços de cada um, de trinta mil réis (o mais velho e o escravinho) até cento e cinqüenta mil réis (Maria).
Pela falta de outros prédios, na dita Ilha, suspeito que não moravam outras pessoas naquela data, exceto o Administrador, e os escravos. Acho, também, que algumas pessoas com sobrenome Lessa que depois surgiram na redondeza deviam ser parentas do dito Procurador José Álvares Lessa, inclusive a esposa do Capitão João Martins Ferreira, que administrou, posteriormente, as propriedades de Bento, Dona Josefa Clara Lessa.